Vicariato Episcopal Norte




quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A MORTE CRISTÃ

Lina Boff
Teóloga pós-doutorada pela Gregoriana de Roma
Docente da Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro

INTRODUÇÃO.
Deus, como Comunidade de Amor relacionada com a pessoa humana e toda a criação, criou tudo para ser eterno. A morte no entanto designa o fim absoluto de tudo o que existe de bom e de mau. Enquanto símbolo a morte é o aspecto destrutível da existência. Ela indica aquilo que desaparece na evolução irreversível das coisas. Por outro lado, a morte introduz aos mundos do Inferno ou do Paraíso. As Ciências Humanas e a experiência mística perceberam que em todo ser humano, em todos os seus níveis de existência, co-existem a morte e a vida no sentido de uma tensão entre duas forças contrárias. Essa tensão se expressa no conflito entre o perecimento inexorável da vida física e o desejo imanente da perpetuação da vida. Por outro lado a morte representa, para o cristão, a transição entre a forma de vida física que se extingue com ela e o início de uma nova forma de vida. A morte como libertadora das penas e preocupações, ela não tem um fim em si mesma, ela abre o acesso ao reino do espírito, à vida verdadeira. Por isso a morte é vista como porta da Vida, “mors janua Vitae”.

Se o ser humano que ela abate vive no nível espiritual, ela lhe revela os campos da luz; ao contrário, se o ser que ela abate vive apenas no nível material ou biológico, ele fica na sombra dos infernos. Além do seu significado etimológico original, o termo morte assume inúmeras significações segundo a interpretação dada pelas várias culturas e crenças ao longo da história. Este trabalho focalizará, em especial, as duas dimensões teológicas da morte: a morte física e a morte espiritual. Ao final o significado da morte de Cristo será destacado no enfoque da morte por amor e da morte como mistério pascal.

I. ETIMOLOGIA DA PALAVRA E SEU SIGNIFICADO BÍBLICO. O vocábulo morte, de acordo com as fontes hebraicas e gregas consultadas, está ligado a diferentes conceitos escatológicos.

1. Significado no AT. O pensamento vétero-testamentário introduz lentamente na vida o significado da morte que representa o fim definitivo da pessoa humana sobre a terra (cf.2Sm 12,15ss). Pode-se considerar três fases importantes da evolução desse pensamento a partir da concepção mais antiga da morte. Na primeira fase enfoco a morte como evento natural que se dá no fim da vida humana; na segunda fase a morte é vista como a passagem de um estado material para outro superior; e a terceira fase enfoco que o pecado introduz a morte como punição do pecado.

Primeira fase: morte como extinção da vida. Seja no AT que no NT, são muitos os vocábulos que traduzem o evento da morte e do morrer, os quais lembram à pessoa humana, a impossibilidade de dispor da própria vida. Desde o tempo de Homero, cada ser vivente, exposto à morte, é considerado como thanetós, mortal. Os seres humanos sobretudo, são chamados hoi thanétoi, os mortais, à diferença dos deuses que são dotados de athanasía, imortalidade. Além dos vocábulos ligados a thánatos, que indicam a passagem da vida à condição de morte, e a própria morte, desde os primeiros tempos e precisamente dos tempos de Jesus, foram usados outros vocábulos para descrever o morrer ou o estado de morte, vocábulos que, na origem indicavam só o sono em grego hýpnos, enquanto o vocábulo teleutáu indica o morrer, entendido como o termo e conclusão da vida, que acontecem de maneira natural.

No período helenístico, o conceito de thánatos, junto com outros vocábulos, vem usado também no sentido translato para indicar a morte espiritual e intelectual. Para os gregos a morte significa que não existe mais vida, há sim o fim da existência e o aniquilamento do ser humano, também se as almas das sombras são acolhidas no reino dos mortos. A morte é o destino comum a todos os seres. O seu aspecto negativo é representado pelo fato de que a morte vem personificada como monstro dos lugares inferiores. Como não há uma fé na criação, não são levantadas perguntas sobre o porque da morte, à qual os seres humanos são submetidos pela natureza, enquanto os deuses são invejados por possuírem a imortalidade. Como normal conseqüência da idéia de que a morte é irreversível, deve-se gozar a vida profundamente. Paulo expressa essa idéia quando escreve aos Coríntios: Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos (1Cor 15,32). A sede de não perder sequer um momento de prazer, expressa a sensibilidade greco-romana. No contexto dessa mentalidade, muito vale aproveitar bem da vida, antes de submeter-se a uma vida amargurada pelo envelhecimento e pela debilidade física. Uma morte tranqüila depois de uma longa vida de prazer terreno, é considerada bem supremo, pois, a morte livra da nulidade da vida dentro de tal concepção.

Segunda fase: morte e imortalidade. Junto a essas formas de comportamento diante da morte, começam a se apresentar expressões de fé na imortalidade da alma. Esta encontra seu lugar de origem na experiência mística órfico-pitagórica, e pela primeira vez é discutida e motivada difusamente por Platão. Tal discussão se dá do ponto de vista filosófico, como complemento do seu conceito moral da pessoa: com a morte a alma se liberta do corpo, a dimensão imortal daquela mortal, da parte não sujeita à dor daquela do sofrimento. Pois que, a vida do filósofo, tem por finalidade, exclusivamente, o puro conhecimento intelectual, como uma meta profundamente desejada. Essas idéias sobre a imortalidade encontram ampla difusão no período do helenismo, sem porém determinar completamente a fé popular. Somente no néo-platonismo confluem idéias platônicas e aspectos mistéricos dos cultos orientais com aspectos míticos do gnosticismo, para formarem um sistema especulativo, no qual ocupa um lugar importante a transmigração das almas, a purificação progressiva e a elevação da alma além do mundo sensível.

Terceira fase: morte como processo evolucionista. A pessoa humana é compreendida aqui como uma totalidade que se insere dentro de outra Realidade bem maior, que passa pelo universo o qual envolve e abre o ser humano para uma vida sem finitude. Os estóicos da antigüidade já diziam que “somos membros de um grande corpo” que é o universo. Tudo isso ocorre dentro de um imenso processo de evolução regido pelo equilíbrio que se dá entre a vida e a morte. Esta vida apresenta uma estrutura organizada de tal maneira, que ela vai se desgastando lentamente, até acabar de morrer. No entanto, o equilíbrio leva a pessoa humana a tomar consciência de forma progressiva, de que sua essência reside na capacidade de relação ilimitada, indefinida, sempre aberta. Tal capacidade de relação, emerge como uma energia vital sempre desperta, sempre aberta a mergulhar no universo da interioridade humana.

Desse modo, a pessoa sempre se dispõe a fazer a experiência abraâmica de aventurar-se para o desconhecido, na busca do novo e da realidade ainda não experimentada. Nessa perspectiva a morte não é conseqüência do pecado, como se apresenta na compreensão judaico-cristã. Esta compreensão não soube acolher a vida imortal como dom divino que se manifesta no amor e na amizade com Deus e toda criação. A morte pré-existia ao pecado humano. Conseqüência do pecado é a forma concreta como experimentamos a morte. Ela faz parte da vida, mas sem destruir a vida.

A interpretação dada aos textos da tradição bíblica ao longo da história, revela a concepção que o povo de Israel tinha da morte. No pensamento vétero-testamentário a morte é separação de Javé, origem da vida. Assim se expressam os salmistas: Volta-te, Javé! Salva-me por teu amor! Pois na morte ninguém se lembra de ti, quem te louvaria no Sheôl? (Sl 6, 6). A pessoa humana que morre carregada de anos, deve ser feliz e reconhecida por ter vivido tanto. O recente Livro do Gênesis passa essa idéia: Quanto a ti (Abraão), em paz, irás para os teus pais, serás sepultado numa velhice feliz. Essa concepção não exclui a precariedade e os lamentos do curso veloz da vida (Sl 90), onde doenças e misérias tornam a vida humana amarga e levam o ser humano implorar a graça do seu Deus, para que o livre dos laços da morte e da descida aos infernos: Cercavam-se laços de morte, eram redes do Sheôl: libertou minha vida da morte, meus olhos das lágrimas e meus pés de uma queda (Sl 116, 3.8). Mas não é a morte como tal que causa medo e angústia, mas sim a morte prematura que vem da punição de Deus pela culpa do ser humano (Dt 13).

Porém, nos livros mais antigos da bíblia hebraica, a criação não pressupõe a imortalidade da pessoa humana, porque a morte, de um modo geral, não é vista como uma punição divina. Só bem mais tarde, a partir do tempo do exílio, o significado da morte se torna um problema que incomoda e interpela os israelitas dos últimos séculos antes de Cristo. Fala-se então de um processo de individualização das relações com Deus (cf, Jr 31, 29ss) e se busca a causa da morte no pecado do ser humano.

A partir dessa concepção, ao ser humano não sobra outra coisa que aceitar o comum destino da morte (cf. Gn 3,19). A morte não vem de fora. Ela se encontra instalada dentro de cada ser. A vida é mortal, por isso, numa compreensão evolucionista de toda criação, uma vida sem a morte é totalmente impensável. No entanto, não é a morte como tal que angustia esse ser humano que diante da morte, o enigma da condição humana se torna extremada (cf. GS 18), mas é sim a morte vista como punição de Deus pela culpa da pessoa humana. A narrativa de Gn 2 e 3 é explicada, desenvolvida e aprofundada muito claramente dentro dessa concepção.

2. Significado no NT. No NT o conceito de morte vai plenamente na linha do conceito vétero-testamentário. A palavra thánatos é usada muitas vezes nos evangelhos referindo-se à morte de Jesus. Paulo ao invés, refere-se à morte humana. Diante desse quadro, adquire uma importância toda particular a pergunta sobre a origem da morte. Quem responde é Paulo com esta frase carregada de sentido: o preço do pecado é a morte (Rm 6,23). O apóstolo mostra aqui que ele não vê a morte como um fenômeno biológico, mas teológico. Sempre que a pessoa humana rompe sua relação com Deus, Comunidade de Amor, que dá a vida aos mortos e chama à existência aquilo que não existe (cf. Rm 4,17), abandona a raiz de sua vida e cai na morte. A pessoa humana pode perceber sua situação vital de fundo e tomar consciência, que por culpa própria, vive na morte. A morte portanto, tem o poder sobre a vida e nesse sentido é uma realidade presente. A realidade da vida de pecado é constituída inseparavelmente, pela morte espiritual e pela morte física. Não sem razão a pessoa consciente de seu pecado grita: Quem me libertará deste corpo de morte? (Rm 7,24). A superação desse estado de pecado a que toda a criação está submetida, se realiza pela ação da graça divina que está além das possibilidades humanas e, ao mesmo tempo, essa graça que só pode vir de Deus Pai, através de seu Filho, pela força do Espírito Santo, é gratuitamente doada e na medida certa de cada ser humano.

Para o NT portanto, a morte não é um processo natural, mas um evento histórico que coloca às claras a existência da pessoa humana como ela é, na sua realidade única e irrepetível. Sendo a morte conseqüência histórica do pecado do ser humano, deve-se levar em conta a profunda ligação existente entre a morte humana e a de todos os seres viventes não humanos, numa palavra, o cosmo como criação de Deus. É ainda a reflexão de Paulo que nos dá uma resposta. A criação, não por sua vontade, mas por causa do pecado humano, é submetida à vaidade e à precariedade. E agora, em expectativa, anseia junto com cada um de nós, filhos de Deus, pela sua libertação da escravidão do pecado (cf. Rm 8, 19-22). Como se pode ver, para Paulo, nem mesmo a morte do cosmo é considerada um evento natural. Na completude dos tempos, tudo é criado de novo e a nova criação trazida pela morte de Jesus consuma a morte física e completa a nossa incorporação ao seu ato redentor.

II. AS DUAS DIMENSÕES TEOLÓGICAS DA MORTE. As duas dimensões da morte humana, a física e a espiritual, são tratadas agora, separadamente. A primeira dimensão é representada pelo fim da vida física, uma realidade inevitável a todo ser humano. A segunda dimensão é representada pelo fim da vida espiritual, uma realidade inexorável, cujo advento poderá ser evitado pelo uso correto da liberdade humana.

1. A morte física. Em sentido literal, a morte física é a extinção da vida, da existência, do tempo. Mas a pessoa humana é mais do que a vida, porque ultrapassa o espaço do tempo que decorre desde o nascimento até a morte, por ser destinada à eternidade. É mais do que a existência pelo fato de ser um ser humano em processo vital de movimento desde que nasce. É mais do que o tempo porque a pessoa humana experimenta o antes e o depois, como evento qualitativamente interior, que rompe com o tempo quantitativo e determina assim o valor do tempo como resposta carregada de sentido, diante da oferta divina do irrepetível tempo da graça salvadora. Para o cristão, homem e mulher, a morte física é um mistério próximo ao mistério da vida.

De fato, a complexidade do evento da morte é objetiva e facilmente percebida na multiplicidade das suas significações. Estas encontram forte ressonância na própria liturgia da qual a comunidade cristã participa, onde a morte é vista como um evento de dor e de alegria. Por uma parte reflete a atmosfera de dor e de tristeza que cabe a um acontecimento assim tão radical e grávido de conseqüências dilacerantes. Por outro justifica um inconfundível e paradoxal veio de ação de graças e até mesmo de alegria. A primeira conotação tem seu sentido que brota da separação das pessoas amadas, da perda das relações familiares e tranqüiliza a existência terrena do temor do inédito, do irrevogável e da possibilidade do fracasso. A segunda conotação nasce da consciência de fé, pois, a morte em Cristo não significa o fim, mas o início de tudo. Torna-se sumamente difícil para o ser humano ser introduzido em tal mistério, pois este é uma realidade divina, transcendente e salvífica que o ultrapassa, não pela obscuridade do mistério da morte, mas antes pela limitação da sua capacidade espiritual de penetrá-lo.

Fica claro que, para a vivência da fé cristã, a morte não pode ser reduzida àqueles fenômenos biológicos e médicos, que levam diretamente em estreita conexão cronológica à morte. Mas deve ser reconhecida como um processo que concerne toda a vida, processo do qual se pode falar de uma verdadeira e própria proximitas mortis – antecipação da morte -, ou de uma experiência de morte antecipada. O ser humano sempre se encontrará diante de uma experiência do morrer interior, que não é um fenômeno particular que se verifica aqui e ali na vida, mas um “humor fluídico” de fundo que tudo pervade.

Embora a sociedade hodierna reconheça os valores positivos da ciência e da técnica que conduzem o progresso e o desenvolvimento do mundo, a pessoa humana contudo, leva em séria conta seus limites. Antes de tudo, a vida atual é ainda prisioneira de suas angústias, de seus problemas, desequilíbrios e contradições. De acordo com o instinto do coração, a pessoa humana percebe que a sua existência não está limitada à experiência terrena; está consciente de trazer dentro de si mesma um germe de eternidade. Por isso reage à idéia de um aniquilamento da sua pessoa e das suas realizações. A ciência e as variadas confissões de fé constituem uma das fontes onde a pessoa humana busca uma resposta que a satisfaça e a tranqüilize nas suas inquietações. A revelação porém, lhe indica uma solução: a causa profunda da dor e da morte deve ser buscada no fechamento da pessoa humana à fonte da Vida. É o que a reflexão e a experiência do apóstolo Paulo afirmam, quando escreve aos Romanos, o pecado imperou na morte (Rm 5,21).

A experiência da finitude da vida física é vasta e é um dado constitutivo da existência humana que a provoca à reflexão a partir da fé cristã, pois, a morte física não se opõe à vida, mas ao nascimento. Por isso cada pessoa é chamada a viver a própria morte, no sentido de que esta se configura num ato profundamente humano que desemboca na plena realização do fim sobrenatural de felicidade para o qual a pessoa foi criada. Em Cristo, o ser humano atinge esse fim na medida em que se liberta pela força da vitória do Ressuscitado sobre a morte (1Cor 15, 56-57). Cristo, o homem novo, passa da morte à vida e envolve em si mesmo toda a espécie humana e toda a criação não-humana, levando-as reviver o mistério pascal. Graças a esse processo, a morte cristã tem um sentido positivo, pois traz consigo a novidade essencial que está nesse fundamento: Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro (Fl 1, 21). Fiel a esta palavra de vida, a pessoa humana sabe com certeza de que, se com Cristo morre, com Ele viverá (2Tm 2, 11).

A partir desse momento muda a relação do ser humano com a morte física que passa a tomar um novo sentido: não é apenas um destino inevitável que pede resignação, aceitação de uma ordem superior sem questioná-la, uma condenação em conseqüência do pecado. Mas é morrer para o Senhor como se vive para Ele (cf. Rm 14, 7ss). No mistério do Senhor a morte física encontra agora sua base firme, porque entraremos num mundo em que não haverá mais morte (Ap 21,4).

2. A morte espiritual. A morte espiritual é a separação de Deus. Um dos traços que distingue a morte física da espiritual é a de que a primeira é inevitável, enquanto a segunda não o é, pois depende de uma decisão da pessoa humana que aceita a graça salvadora de Deus por meio de Jesus Cristo ou rejeita esse dom com seu fechamento, o que significa romper sua relação com Deus e com todas as coisas que a Ele se referem. E aqui afirma-se outra vez que a morte é o salário do pecado (Rm 6, 16). Pelo seu profundo nexo com o pecado, a morte espiritual é compreendida como o não dito a Deus, fonte de vida, pelo ser humano. Como a concepção de vida inclui não apenas a vida física, mas é o compêndio de todos os bens e bênçãos que o justo merece, em primeiro lugar a amizade com Deus, assim a concepção de morte espiritual pode abranger todo o mal e toda a infelicidade que cai sobre sobre a pessoa que não acata a graça divina.

Desse modo, tudo converge para mostrar que, na morte espiritual afirma-se a contradição e o paradoxo da própria pessoa. Por um lado, criada para usufruir eternamente da vida e, por outro, pela sua condição física, ameaçada naturalmente, por desejos e inclinações que competem com essa vida espiritual. Só na perspectiva cristã a morte espiritual pode se tornar o lugar da graça libertadora do pecado. Para o cristão a morte é o lugar privilegiado do devir da consciência do ser humano, da sua liberdade, do seu encontro com Deus como Comunidade relacionada pelo Amor e da decisão do seu destino eterno. Essa dimensão da morte comporta que ela seja um evento ativo que prepara a pessoa humana através das opções que faz na sua existência concreta de cada dia.

O evangelista Lucas coloca na pregação de Jesus a narrativa de duas parábolas que esclarecem muito bem, a meu ver, a morte espiritual e a morte física também. A parábola do mau rico e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31), mostra o estado da pessoa humana que morre de morte física, mas não morre de morte espiritual, isto é, seu espírito que vem da fonte de vida que é Deus, vive e goza da presença e da visão beatífica. É o caso do pobre Lázaro. Por outro lado, o estado da pessoa que morre não só de morte física, mas também de morte espiritual, não vive porque é atormentado. É o caso do mau rico.

Na parábola do filho pródigo (15, 11-32), o sentido da morte espiritual parece se tornar mais evidente ainda. A volta do filho ‘infiel’ que saíu de casa e esbanjou a herança recebida, ao voltar para a sua casa, o pai o recebe com alegria, festa, comida e muita gente para comemorar. Lucas mostra a misericórdia infinita do Pai nas palavras que atribui a Jesus que explica aos seus ouvintes o ensinamento de vida e de morte que a parábola traz: este meu filho estava morto e tornou a viver; ( Lc 15, 24). A morte de que fala o evangelista consiste na vida transviada do caminho do bem que o filho pródigo havia levado: separou-se do pai, dissipou seus haveres de herança, levou uma vida devassa. Tudo isso causou–lhe uma verdadeira morte espiritual.

A morte espiritual não é querida por Deus, pois Ele não se agrada com a morte do ímpio (Jó, 18, 5-21), do pecador, prefere que ele se converta e que viva: certamente não tenho prazer na morte do ímpio; mas antes, na sua conversão, em que ele se converta do seu caminho e viva (Ez 33, 11). Nesse contexto o profeta anuncia o estabelecimento de um reino escatológico, onde Deus destruirá para sempre essa morte que Ele não havia criado nas origens (cf. Is 25, 8ss). Os salmistas formulam a esperança de que Deus os livrará para sempre do poder do Sheôl (cf. Sl 49,16).

O sentido de morte espiritual é encontrada muitas vezes em João e Paulo. João a vê como conseqüência da incredulidade e do pecado. Passa da morte espiritual para a vida e vida eterna, a pessoa que se abre à escuta da Palavra e à fé no Enviado do Pai que é Jesus (Jo 5,24). Para não incorrer à morte espiritual, o evangelista sublinha que o alimento do cristão não é a carne que para nada serve, mas sim o espírito que vivifica e as palavras que dão vida (cf. Jo 6, 63). Auscultar a palavra de Deus, na fé, é fortemente sublinhada quando fala do ensinamento de Jesus com esta expressão: se alguém guardar a minha palavra, jamais verá a morte (Jo 8, 51). Fechar-se à verdade é morrer espiritualmente. A narrativa de Mateus atribuindo a Jesus o encorajamento que faz aos seus discípulos diante das perseguições por causa da pregação aberta da verdade, é ainda mais contundente. Recomenda aos seus discípulos que não temam os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temer antes aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena (Mt 10, 28).

III. O SIGNIFICADO DA MORTE DE CRISTO. O sentido da morte é dado por Cristo que veio no meio de nós, assumindo a nossa condição humana, realizando o plano salvífico do Pai, submetendo-se à morte para reconciliar toda a humanidade com Deus e dar um sentido de vida a tudo aquilo que foi submetido ao pecado e à morte. Cristo fez isso como vencedor da morte e do pecado com sua ressurreição. A morte humana portanto, é o morrer do cristão como um morrer com Cristo (Rm 6, 8), um morrer no Senhor (1Cor 15,18). Nesse contexto, a morte de Jesus é vista e proclamada como o evento salvífico único e fundamental (Rm 6, 10). Vou abordar dois enfoques da única interpretação da morte, à luz da fé cristã. São eles: 1)- o enfoque da morte por amor; 2)- e o enfoque propriamente do mistério pascal.

1. A morte por amor: doação-serviço. Com Cristo a morte muda completamente de sentido e redime a criatura na sua condição originária, sem limites e sem pecado. A morte de Jesus é, em primeiro lugar, o modelo da morte cristã. Morrer como Jesus é viver na forma da dar a vida, na forma de missão. João explicita esse modo novo de morrer, quando descreve o ato do lava-pés na última ceia de Jesus com seus discípulos: tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim (Jo 13,1). Dar a vida é ir até o fim, é servir, é fazer da vida um serviço aos outros de maneira indistinta a todos. Essa consumação da vida no serviço aos outros, não supõe necessariamente uma morte dramática e cruenta. Pode comportar uma longa série de limites humanos, como o envelhecimento, a rotina desconhecida do dia-a-dia que torna o serviço nada espetacular, a prática das boas obras de caridade, a fidelidade ao mandamento de Jesus, as exigências do seu seguimento, a superação dos fracassos e das humilhações, a doação da própria vida por amor. O importante é que os anos sejam consumidos numa missão que traduzam concretamente o amor, o dom da vida até o fim. Pois, nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Aquele que não ama permanece na morte (1Jo 3, 14).

Cristo não veio ocupar-se com anjos, mas sim com a descendência de Abraão que somos todos nós. Libertou-nos do medo da morte, desceu à região sombria dos mortos para traçar um caminho de luz. A partir dessa experiência kenótica de Cristo, a morte torna-se passagem para uma vida mais alta. Os que morrem no Espírito de Cristo, somente conhecem a morte física, pois a morte espiritual fica anulada: os que morrem com Ele passam da morte para a vida, significa morrer com Cristo e passar com Ele da morte para a vida (Jo 5, 24). Somente a morte por amor como doação-serviço que se deu em Cristo, merece levar o nome de vida. João o atesta quando escreve a narrativa dialógica com Marta por ocasião da ‘revivação’ de seu irmão Lázaro. O evangelista fundamenta muito bem esse alto momento de amor e de doação-serviço de Jesus, que troca palavras de vida com uma mulher, Marta: Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem, vive e crê em mim jamais morrerá (Jo 11, 25).

A partir do evento que se manifestou em Cristo pela sua morte-ressurreição, o processo da reflexão teológica sobre a morte física e a morte espiritual, atingem uma expressão tão forte que parece fundir um conceito no outro. Faço esta afirmação em base à progressiva consciência que o povo de Israel foi tomando ao longo de sua experiência religiosa de fé em Javé, como Senhor da vida e da morte, e em base às palavras atribuídas a Jesus, no contexto em que Jesus viveu. As citações feitas até agora, ora deixam entrever a fusão dos conceitos, ora mostram de forma mais explícita a unidade de fundo que a palavra divina guarda com relação à vida humana. Esta palavra, que vem da fonte da Vida, que é Deus, é considerada nas suas expressões do tempo cronológico do presente, das expressões que resgatam o passado e daquelas que nos colocam na transcendência do futuro.

Clemente de Alexandria (+215) aludiu à revolução da concepção que se tinha da morte de Cristo, quando afirmou: “Cristo mudou o poente em nascente”. A morte tornou-se assim uma foiceira desarmada ou, como diz santo Agostinho, uma abelha que, ferroando, perde o próprio ferrão e morre. Para chegar ao Deus da vida, vale a pena pagar o preço que a morte representa. A morte então não se apresenta mais como fim, mas como “mudança de morada”, ou como diz o poeta profético David Turoldo: “Morrer é sentir quanto é forte o abraço de Deus”.

2. A morte salvífica: mistério pascal. Em Cristo, a morte se faz mistério pascal, o mistério de Deus por excelência, um Deus que se faz homem em Jesus Cristo, assume o pecado da humanidade e se doa inteiramente por amor, reconciliando assim, toda criação com seu Criador. A expressão mistério pascal, evoca o significado central da palavra muito usada por Paulo, mystêrion, como mistério de Deus, intimamente conectado com a interpretação cristã da morte e da morte em Cristo. O mistério da cruz de Cristo que realiza o plano salvífico de Deus sobre o mundo é objeto da revelação, é mistério atual, dinâmico, no qual a pessoa de fé adere por amor com toda a sua vida, quando toma consciência de que não é o prestígio da palavra e da sabedoria humanas, que anunciam esse mistério profundo de Deus. Mas é a abertura à graça salvadora de Deus como dom que se mistura com morte e vida e vida com morte. Ao falar desse mistério, num contexto de vida-morte-vida, o apóstolo se recomenda como ministro de Deus sujeito ao processo de uma morte que o faz viver mais intensamente a vida em Cristo: pela sua perseverança nas tribulações, pelo seu amor sem fingimento, por ser tido como moribundo e, não obstante, vivo; como punido e, não obstante, livre da morte, como nada tendo, embora tudo possuindo (cf 2Cor 6, 1-10). Pois eu não quís saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (1Cor 2, 2).

Na debilidade e na humildade, todo o cristão, homem e mulher, imerso nas águas do batismo, legitimado e confirmado no memorial da eucaristia, ponto, mais alto da celebração da fé cristã, é feito ministro do Cristo crucificado e também administrador do profundo mistério de Deus, envolvido no silêncio desde os séculos eternos, mistério só agora revelado na mensagem de Jesus Cristo, que o levou a superar as fronteiras da morte com sua ressurreição, para o resgate de toda a humanidade por amor (cf. Rm 16, 25-27). O sentido da morte de Cristo, portanto, sintetiza a nossa passagem pascal da morte para a vida plena, do tempo para a eternidade como um permanente presente e de uma relação estreita com Deus e o cosmo para uma relação aberta e ilimitada com a Comunidade divina e com toda criação.

A interpretação cristã da morte física e espiritual do ser humano, passa pela tragicidade de Jesus que a viveu como um ‘cálice’ de sofrimento (Mt 26,39), mas também como a sua ‘hora’: o momento do seu supremo ato de amor, ‘hora’ da glorificação e do retorno ao Pai (Jo 13, 31). O grito angustiante do Jesus inocente, que tomou sobre si o pecado da humanidade inteira e experimentou todas as nuances da miséria humana, é seguido pela sua livre e amorosa entrega ao Pai (Lc 23,46).

Na morte de Cristo a pessoa que crê é solicitada a transformar sua morte num lugar privilegiado do encontro derradeiro com o Pai, numa decisão de amor pessoal e de decisão definitiva acerca de seu destino. Viver e morrer para o cristão, significa aceitar a passagem pascal, onde a doação a Cristo e aos irmãos não se realiza sem dificuldades e desilusões, sem passar pelas inúmeras mortes cotidianas até a morte física, etapa obrigatória criada pelo ato redentor de suprema doação de Cristo que morre por amor e ressuscita para que nós possamos ressuscitar com Ele. Só na ressurreição de Cristo a morte tem sentido: Deus, através do Filho e por amor à humanidade, se deixa tocar pela morte, para que esta humanidade viva a verdadeira e definitiva vida de amor. A esperança de imortalidade e de ressurreição que despontava no AT encontrou agora, no mistério pascal de Cristo, seu fundamento único. Agora vivemos uma vida nova, porque aquele que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos, dará a vida também aos nossos corpos mortais (Rm 8, 11).

Nota conclusiva: A reflexão não termina com este verbete. Mesmo assim, aquilo que apresentamos como contribuição teológica na perspectiva da escatologia, tem seus limites. A modo de conclusão evidenciamos três pontos que esta temática deixa para cada pessoa que se dedica com o amor do coração e da inteligência da fé cristã, à acurada investigação de toda a palavra vivida e escrita sob a ação do Espírito, como sólido ensinamento acerca do mistério da vida-morte-ressurreição de Cristo. 1)- A morte tem uma estrutura trinitária para a fé cristã: morrer só tem sentido se for um morrer com Cristo, no seu Espírito, para a comunhão com o Pai; 2)- a comunhão trinitária se estende à comunhão com todas as criaturas: morrer no seio da comunidade humana e eclesial é morrer um pouco cada dia, na esperança da transfiguração final de Novos Céus e de Nova Terra; 3)- à luz do sentido da morte a qual Cristo se submeteu, é convicção comum de que ela não separa a pessoa humana de Deus, mas a introduz na comunhão com Cristo morto e ressuscitado, que a leva à origem e à fonte de toda a vida. O mundo, a vida, a morte, as coisas presentes e futuras. Tudo é vosso; mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus (1Cor 3, 22). Toda a fadiga, sofrimento e a própria morte, têm um sentido se vividos e vistos à luz da morte de Cristo que morre por amor, imerso no mistério único da nossa fé, o mistério pascal da total e verdadeira libertação de todos os limites que fazem do morrer uma tragédia e não uma bênção. Morrer como Cristo é encontrar a água borbulhante da vida, é saciar a fome de todas as comidas, é desabrochar como a rosa em botão e é amadurecer uma vez por todas para perfumar e alegrar todo o universo.

Bibliografia básica:
BOFF, L., Ética da Vida, Letraviva, Brasília, 1999;
Vida para além da morte, Editora Vozes, Petrópolis, 1997;
BOFF, CL. Curso de Escatologia, Marianum, Roma 2001.
BOFF, Lina, “Índole escatológica da Igreja peregrinante”, in Atualidade Teológica, 13, (2003), 9-31; Id. “A fé na comunhão dos santos”, Atualidade Teológica, 16 (2004), 25-47;
CULLMANN, O. La inmortalidad del alma o la resurreccion de los cuerpos, Stvdivm ediciones, Madrid, 1970;
de la PEÑA, J. L. R., La outra dimensión. Escatología cristiana, Sal Terrae, Santander, 1986; LIBÂNIO, J. B. e BINGEMER, M.C.L. Escatologia cristã, Editora Vozes, Petrópolis, 1996;
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Escatología II, 1991; VERNETTE, J., Reencarnación Resurreción. Comunicación con el más allá. Editorial CCS, Madrid, 1994; VV.AA., Concilium, janeiro (1969), todos os artigos do número monográfico.
ESQUEMA
Introdução
I. Etimologia da palavra e seu significado bíblico
1)- Significado no AT
1ª fase: morte como extinção da vida
2ª fase: morte e imortalidade
3ª fase: morte como processo evolucionista

2)- Significado no NT
II. As duas dimensões teológicas da morte
1)- A morte física
2)- A morte espiritual

III. O significado da morte de Cristo
1)- A morte por amor: doação-serviço
2)- A morte salvífica: mistério pascal

Nota conlusiva
Bibliografia básica

A CIDADANIA QUE PASSA PELA EXCLUSÃO SOCIAL. Uma perspectiva teológica

Lina Boff
Teóloga pós-doutorada pela Gregoriana de Roma
Docente da Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro

A palavra cidadania, segundo o padrão erudito, é derivada da palavra cidadão, pessoa que goza dos direitos civis e políticos de um Estado ou no desempenho de seus deveres para com este. O cidadão é o habitante da cidade.

Idéias de cidadania floresceram em diversos períodos históricos, como por exemplo, na Grécia e na Roma antigas, nos burgos da Europa Medieval, nas cidades do Renascimento. Mas a cidadania moderna, embora influenciada por essas concepções antigas, possui um caráter próprio que se expressa na cidadania formal e na cidadania substantiva.. A primeira é hoje quase universalmente definida como a condição de membro de um estado-nação. A segunda - cidadania substantiva - definida como a posse de um corpo de direitos civis, políticos e especialmente sociais, tem-se tornado cada vez mais importante.

Em ambos esses aspectos houve um processo de desenvolvimento durante o século XX e mais marcadamente a partir da Segunda Guerra Mundial, que coloca algumas questões novas para tais concepções.

A cidadania formal tornou-se uma questão importante em conseqüência da maciça imigração no pós-guerra, o que resultou uma nova política de cidadania. Ao mesmo tempo houve um crescimento da chamada “dupla-cidadania” - apesar dos esforços internacionais para reduzi-la -, na qual os imigrantes conservam a cidadania em seu país de origem e sob forma diferente na comunidade européia, onde os cidadãos dos estados-membros poderão vir a ter uma segunda cidadania na Comunidade Européia.

No caso da cidadania substantiva, seu desenvolvimento foi analisado em um estudo clássico de T. H. Marshall em 1950, que descrevia um desenrolar da extensão de direitos civis, políticos e sociais para toda a população de uma nação.

Na Europa Ocidental, depois de 1945, foi o aumento dos direitos sociais através da criação de um estado de bem-estar, o qual produziu as grandes mudanças. Estas tiveram como objetivo estabelecer princípios coletivistas, igualitários e políticos que contrabalançavam em certa medida, nas tendências não igualitárias da economia capitalista.

A situação foi diferente porém, na Europa Oriental, onde as ditaduras comunistas restringiram gravemente direitos civis e políticos, ao mesmo tempo em que proporcionavam em âmbito considerável, importantes direitos sociais. Os movimentos de oposição que finalmente provocaram a queda desses regimes, na verdade enfatizaram muito fortemente a idéia de cidadania como incorporação de direitos básicos, civis e políticos das nações, como também a concepção correlata de uma necessária independência das instituições da sociedade civil em relação ao Estado.

Uma participação desse tipo porém, depende de forma crucial do alargamento dos direitos sociais para proporcionar um nível geral suficiente de bem-estar econômico, saúde, lazer e educação, e sem dúvida também de novas formulações do que venha a ser o “bem comum”. Como esse processo influenciou nas sociedades latino-americanas?

Cidadania para uma nova democracia
Como na maioria das sociedades latino-americanas, as lutas políticas, de modo específico no Brasil de hoje, são travadas em torno a projetos alternativos de democracia. Os movimentos sociais participam profundamente dessa luta desde o começo da resistência ao regime autoritário, no início dos anos 70. Embora o papel positivo dos movimentos sociais na transição para a democracia tenha sido amplamente reconhecido pelos analistas, desde o retorno ao domínio civil em 1985, sua contribuição real e potencial para a expansão e aprofundamento da democracia, foi questionada.

Esse questionamento sempre privilegiou a dimensão institucional do processo democrático da seguinte forma: os movimentos sociais são apresentados como irrelevantes e até mesmo desestabilizadores para a institucionalização da democracia para o país. Assim sendo, as outras dimensões fundamentais do processo, valorizadas pelos historicamente excluídos da democracia representativa tradicional, são freqüentemente ignoradas.

O traço distintivo dessa concepção, que aponta para a extensão e aprofundamento da democracia, é a democratização da sociedade como um todo, incluindo portanto as práticas culturais encarnadas nas relações sociais que criam exclusão e desigualdade. Essa concepção de democracia está sendo levada adiante por meio de uma redefinição da noção de cidadania e de seu referente central, que é a noção de direitos. Enfatizar as implicações que esta nova concepção de cidadania traz para o processo de democratização e para os movimentos sociais, de lutarem pelo direito a ter direitos, produz novas visões de uma sociedade democrática. Implica também uma reivindicação radical de sua transformação. A ordem social existente é limitadora e excludente com relação aos valores e direitos dos movimentos sociais.

Para os setores excluídos da sociedade brasileira, a percepção da relevância política dos significados culturais embutidos nas práticas sociais, faz parte de sua vida cotidiana. Como caso exemplar, que se pode generalizar facilmente para toda a América Latina, pode ser este: a sociedade brasileira apresenta uma desigualdade econômica em níveis extremos de pobreza que têm sido apenas, um dos aspectos mais visíveis de uma organização desigual e hierárquica das relações sociais em seu conjunto – o que pode ser chamado de autoritarismo social. Essa concepção predomina numa nação que se diz democrática.

Diferença de classe, raça, e gênero constituem a base principal de uma classificação social que impregnou historicamente a cultura brasileira. Sob a aparente cordialidade da sociedade brasileira - bem descrita por Sérgio Buarque de Holanda, sociólogo da nossa cultura -, a noção de lugares sociais constitui um código estrito, muito visível e ubíquo –omnipresente -, nas ruas e nas casas, no Estado e na sociedade, o qual reproduz a desigualdade das relações sociais em todos os níveis, subjazendo às práticas sociais e estruturando uma cultura autoritária.

Pouco ou nada se reconhece o fato de que, os movimentos populares urbanos alcançaram essa compreensão da umbricação entre cultura e política. Ao perceberem de que não tinham que lutar apenas por seus direitos sociais – moradia, educação, saúde, lazer –, mas pelo próprio direito a ter direitos, tomaram consciência de que ser pobre não significa apenas privação econômica e material, mas também ser submetido a regras culturais que implicam numa completa falta de reconhecimento das pessoas pobres como sujeitos, isto é, como portadores de direitos, como cidadãos.

Um instrumento fundamental dos movimentos sociais em sua luta recente pela democratização, foi a apropriação da nova noção de cidadania, que torna operacional sua visão ampliada de democracia. As origens da atual noção redefinida de uma nova cidadania podem ser parcialmente encontradas na experiência concreta dos movimentos sociais no final da década de 70 e dos anos 80.

Para os movimentos populares urbanos, a percepção das carências sociais como direitos, representou um passo crucial e um ponto de inflexão em sua luta. Para outros movimentos sociais, como o ecológico e os conduzidos por mulheres, negros e outros, a luta pelo direito à igualdade e à diferença, encontrou claro apoio na noção redefinida de cidadania, que é a organização social pelo direito a ter direitos. Uma parte significativa dessa experiência comum foi constituída pela elaboração de novas identidades como sujeitos – o titular de direitos civis, religiosos, culturais -, como portadores de direitos, como cidadãos iguais.

Estudiosos e estudiosas do assunto sustentam que a multiplicação das arenas públicas por uma redefinição da noção de cidadania, liderada pelos que têm sido relegados ao estatuto de não-cidadãos na América Latina, deve ser vista como parte integrante da expansão e aprofundamento de uma cidadania democrática e da própria democracia como sistema constitucional.

A partir dos anos 90, o uso do termo cidadania se difundiu cada vez mais na sociedade brasileira. Enquanto a noção redefinida continuou subjacente às lutas populares e às práticas políticas de partidos políticos, das Organizações Não Governamentais (ONGs) e de todos os Movimentos congregados na Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONGs). O novo conceito de cidadania esteve também por trás de campanhas de solidariedade voltadas para a mobilização da classe média, tais como a Ação da Cidadania contra a Fome liderada por Herbert de Souza - o Betinho – e outras Associações como a CIVES - Associação Brasileira de Empresários pela Cidadania.

Uma nova noção de cidadania

A disputa simbólica – conjunto de símbolos que representam a realidade em questão -, em torno ao significado da nova concepção de cidadania, prova sua relevância política e a importância atribuída pelos diferentes contestadores das redefinições apresentadas pelos movimentos sociais. Mas uma tal disputa requer também um esforço para clarificar a noção referida aqui como “nova cidadania”.

O primeiro elemento distintivo nessa noção, provém da própria concepção de democracia, na qual a exclusão sócio-cultural de gênero, racial e econômica relegou aos subalternos, o estatuto de não-cidadãos. Precisa mudar o conceito de democracia que se tem para compreender a nova concepção de cidadania. Nesse sentido a nova cidadania identifica construções culturais de autoridade social como alvos políticos fundamentais da democratização. Acredita-se que a redefinição da noção de cidadania, formulada pelos movimentos sociais, expressa não somente uma estratégia política, mas também uma política cultural .

Ao afirmar a noção de cidadania como uma estratégia política, significa enfatizar seu caráter de construção histórica, que expressa interesses e práticas concretas, não definidas previamente, pois ela é um processo. A nova cidadania então, assume uma redefinição da idéia de direitos, cujo ponto de partida é a concepção de um direito a ter direitos. Ela inclui a criação de novos direitos que surgem de lutas específicas e de suas práticas concretas. Essa redefinição inclui não somente o direito à igualdade, como também o direito à diferença, que especifica, aprofunda e amplia o direito à igualdade.

O segundo ponto que implica o direito a ter direitos, é o de que a nova cidadania, ao contrário de outras concepções, não está vinculada a uma estratégia das classes dominantes e do Estado que incorporam os excluídos com o objetivo de integrá-los ao capitalismo neoliberal. A nova cidadania requer a constituição de sujeitos sociais ativos, agentes políticos; são esses que vão definir o que consideram ser seus direitos e vão lutar para que sejam reconhecidos enquanto tais. Nesse sentido, é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos a criarem uma nova cidadania, uma cidadania que vem “de baixo”, e não uma cidadania que vem do Estado e das velhas oligraquias..

O terceiro ponto é a idéia de que a nova cidadania transcende uma referência central do conceito liberal. A nova cidadania reivindica acesso, inclusão, participação e pertencimento a um sistema político que vai se construindo de modo progressivo. O que está em jogo de fato, é inventar uma nova sociedade. O reconhecimento dos direitos de cidadania, tal como é definida por aqueles que são excluídos dela no Brasil de hoje, aponta para transformações significativas em nossa sociedade e em sua estrutura de relações de poder. Experiências recentes inspiradas pela nova noção de cidadania, ajudam a visualizar possibilidades futuras. A nova cidadania é um projeto para uma nova sociabilidade - maneiras de se relacionar de quem vive em sociedade.

A ênfase no processo de constituição de sujeitos – o titular de direitos - em “tornar-se cidadão”, na difusão de uma cultura de direitos, coloca novamente a questão da cultura democrática, que é a ampliação do alcance da nova cidadania: a nova cidadania é um projeto para uma nova sociabilidade. Não somente a incorporação ao sistema político em sentido estrito, mas um formato mais igualitário de relações sociais em todos os níveis, inclusive novas regras para viver em sociedade. Isso tudo exige o reconhecimento do outro como sujeito portador de interesses válidos e de direitos legítimos, o direito a ter direitos.

Essa concepção ampliada de cidadania implica, em contraste com a visão pós-moderna liberal, que a cidadania não está mais confinada dentro dos limites das relações com o Estado, mas deve ser estabelecida no interior da própria sociedade. O processo de construção de cidadania como afirmação e reconhecimento de direitos é, especialmente na sociedade brasileira, um processo de transformação de práticas arraigadas na sociedade como um todo. Essa estratégia política implica uma reforma moral e intelectual que consiste num processo de aprendizagem social, de construção de novos tipos de relação social, que requer obviamente a construção de cidadãos como sujeitos ativos.

A exigência de um olhar ético

A atual situação aqui apresentada é um desafio radical não só a sociedade que está aí, mas ao Estado vigente, sobretudo às igrejas cristãs. Mais especificamente, os desafios para a América Latina se tornaram ainda mais complexos, em que, nem sempre o povo empobrecido e não considerado cidadão, tem contado com uma presença decidida das Igrejas a seu lado. A dignidade humana e a Constituição do nosso país são apresentadas nestas palavras: “Pessoas procurando restos nas latas de lixo, filas monstruosas à espera do atendimento nos hospitais, mendigos e crianças dormindo nas ruas”.

Estas são cenas comuns em várias capitais e até mesmo em tantas cidades do interior. É a vergonhosa demonstração da falta de respeito com a dignidade das pessoas. A Constituição da República chamada de Constituição cidadã, diz no artigo 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados na forma dessa Constituição.

A crise mais ampla da civilização moderna, que tem a ver com o fim de determinada percepção do tempo, do sujeito, das totalidades omniexplicativas e com o triunfo da própria racionalidade instrumental técnico-científica, tem sido estudada e abordada de diferentes ângulos e por muitos estudiosos no assunto. Interessa-nos aqui sublinhar algumas conseqüências político-teológicas deste processo e o desafio que representam no contexto brasileiro para as Igrejas e instituições religiosas e cristãs.

Num momento em que corremos o risco de cataclismos sociais e ecológicos, faz-se urgente dar um novo sentido fundamental para a vida humano-social. Isso implica um reencontro do ser humano consigo mesmo e com uma significação omnienglobante.

Em primeiro lugar, importa refocalizar a própria compreensão do ser humano. Ele deve ser entendido como um nó de relações voltado em todas as direções. Ele é natural e histórico, individual e social, racional e intuitivo e também emocional. A democracia supõe a superação da compreensão antropocêntrica e individualista do ser humano que marca toda a antropologia da modernidade. Como ser de relações, ele somente se realiza quando for sujeito de sua prática, quando acolher a alteridade do outro, que também é sujeito, e juntos se fizerem atores de uma história coletiva de onde se gesta e nasce a nova cidadania.

Em segundo lugar, é fundamental rever a concepção de sociedade. Ela não é, nem a soma de indivíduos unidos ao redor da lei, nem uma massa comandada pelo Estado. Mas é o conjunto articulado de sujeitos, como titulares de direitos, como cidadãos portanto, constituindo uma subjetividade coletiva que se compromete na construção de um bem comum para os humanos e para todos os seres da natureza.

Em terceiro lugar, a própria noção de democracia deve ser revisitada. Não basta a democracia representativa como temos hoje, ela deve ser social, participativa e capaz de deixar espaço e meios para a construção da cidadania que conquistou o direito a ter direitos. Ela se funda na maior participação de todos, a partir de baixo, que cria mais e mais níveis de igualdade, que tem como valor central a solidariedade e que se abre para a comunicação intersubjetiva dos cidadãos, com suas visões de mundo, tradições, valores e símbolos.

Torna-se urgente e precisa refundar a economia política. Em seu modo originário, ela é a gestão da carência e não a técnica do crescimento ilimitado na produção de bens e serviços. O que importa hoje, é uma economia do suficiente para todos; portanto, como meio para a vida dos seres humanos e da natureza, e não mais como um fim em si mesmo.

Impõe-se portanto, um novo paradigma de desenvolvimento. Deve-se reconhecer a unidade e a articulação orgânica das dimensões econômica, política, social e ambiental da história humana. O objetivo central do desenvolvimento e a referência permanente, será sempre o ser humano, individual e social. A atividade econômica é instrumento para esse fim.

Em último lugar, é imprescindível uma transformação cultural e subjetiva. Não bastam as mudanças institucionais. Lá onde vive o ser humano, devem viver também os ideais humanos e democráticos como valores universais a serem vividos na família, na escola, nas associações, nas igrejas.

A cidadania proposta é um desafio gigantesco, porque tem em vista a pessoa humana no seu todo, redefinindo sua participação no processo social e político, seu espaço de direito a ter direitos para a construção da comunidade humana. A redefinição da noção de cidadania formulada pelos movimentos sociais, expressa, não somente uma estratégia política, mas também uma política cultural.

Um olhar teológico desafiante

Neste processo acelerado de opacidade dos processos culturais umbricados com a democracia e a própria fé cristã e religiosa, a primeira dimensão a ser afetada nas pessoas é a sua capacidade de perceber a realidade. A tradição profética judaica apresenta como o povo era alertado sobre esse tipo de opacidade criada pelos sistemas políticos e econômicos daquele tempo.

Trata-se aqui de resgatar o espírito com que os profetas falavam ao povo da urgência de se mudar a situação em que este se encontrava e viver segundo a sua originária criação, a condição de pessoas livres e sujeitos da própria construção humana e transcendente.

Lucas quando elabora seu tratado de teologia a partir de sua fé universal que inclui todos os componentes geográficos e históricos de sua fonte, retoma o profeta Isaías para apresentar o Messias com seu programa missionário. Ele não cria um programa novo, com novas palavras e versões, mas retoma a tradição mais antiga e originária da tradição religiosa de suas comunidades de fé e dá-lhe uma nova veste. Adapta as palavras do profeta que Lucas retoma e as aplica a sua realidade: O espírito do Senhor Javé está sobre mim, porque Javé me ungiu; enviou-me a anunciar a boa nova aos pobres, a curar os quebrantados de coração e proclamar a liberdade aos cativos, a libertação aos que estão presos... (Is 61, 1-3; cf. Lc 4, 18-19).

Lucas mostra Jesus na sinagoga de sua terra natal, Nazaré, partindo desse texto para explicar sua própria missão que responde à expectativa do povo de Israel. Com estas palavras Jesus torna realidade histórica aquilo que era uma utopia do povo, um anúncio de tantos profetas. O destaque entre o que diz o profeta e o que proclama Jesus, é assinalada por um advérbio, “hoje”. Este “hoje” de Jesus abre o tempo da realização de um projeto que habitava a vida e a história de um povo e se torna uma experiência paradigmática até os nossos dias.

A prática e a realização desse programa é mostrado ainda por Lucas, quando João Batista envia discípulos seus a verificar se Jesus era realmente o Messias esperado pelo povo. Perguntado, és aquele que há de vir ou devemos esperar outro? (cf. Lc 7,18-23). Jesus não responde, mas age, faz gestos que falam de vida e clamam por justiça e inclusão. O evangelista retoma ainda Isaías e o adapta às comunidades de fé. Reacende-se a esperança: Então o coxo saltará como o cervo e a língua do mudo cantará canções alegres porque a água jorrará do deserto e rios da terra seca (cf. Is 35, 4.5-7; cf. Lc 7, 18-23).

A prática de Jesus tem uma significação vertebral para a opacidade social, cultural, política e religiosa de tantos povos. É um tempo que marca uma nova ordem e aqui está o grande desafio para todos, sobretudo para as igrejas e instituições cristãs e não cristãs, que se crêem formadoras de consciências e anunciadoras de uma cidade inclusiva e integrada.

Concluindo para abrir mais

O direito a ter direitos continua, todavia hoje, a ser uma utopia por realizar politicamente, mas um grande espaço de atuação para um vasto Continente chamado a testemunhar a fé cristã pela sua esperança e pela solidariedade que o legitima como povo latino-americano do sul e caribenho. E para finalizar esta contribuição reflexiva, levanto uma questão permanente: Até quando a fé continua sendo maior e mais ampla, diante das interpelações da razão crítica, que funciona como filtro da fé, a qual, nem sempre responde aos desafios da realidade.

(Palestra proferida na X Mostra-PUC-Rio, sobre Valores, e na Universidade de Chicago, aberta ai público, pela cadeira de Ética Cristã, agosto e outubro de 2006).

Referências bibliográficas
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