Vicariato Episcopal Norte




segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O NATAL DE MARIA DE NAZARÉ E A MARIA DO NATAL DE HOJE

O NATAL DE MARIA DE NAZARÉ
E A MARIA DO NATAL DE HOJE
Profª Drª Lina Boff
O Natal é, seguramente, a festa mais sentida e universal do Cristianismo. É uma festa celebrada até pelas pessoas que não acreditam no Deus dos cristãos. Por isso, ela é mais que uma festa celebrada pelo Cristianismo, é um espírito que envolve o coração, os sentimentos e veste de luz toda a criação que Deus plasmou e enfeitou com tanto carinho. Esse espírito de irmandade e fraternidade universal, faz com que as famílias se encontrem, troquem presentes, desejem Feliz Natal!, enviem cartões de Boas Festas, celebrem a Ceia de Natal que une e abraça a todos e a todas, na alegria, na luz e num ambiente em que o sagrado se faz presença e toma rosto na face de cada pessoa que reluz naquela noite.
Diante deste quadro tão bonito, como teria celebrado os aniversários de seu filho Jesus, Maria de Nazaré, aniversário que hoje nós chamamos de Natal? Muitas perguntas a respeito teríamos a fazer. Mas vamos recorrer um pouco a trajetória que Maria fez quando celebrava, junto com sua comunidade, seu marido José e seu filho Jesus, a fé que nutria pelo Deus da Vida. O que Maria rezava e celebrava quando ia ao Templo? Vamos ver algumas de suas orações proféticas e sálmicas que ela, com sua comunidade de fé judaica, fazia com Esperança e Fé.
Do profeta Isaías, provavelmente, Maria exultava de Esperança e Fé sempre que proclamava estas profecias: Povo de Israel, sabei que o Senhor mesmo vos dará um Sinal: Eis que a jovem conceberá e dará à luz um filho, que será chamado Emanuel, isto é, Deus conosco (Is 7,14). O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria (Is 9,1). Ó Jerusalém, põe-te em pé, resplandeça, porque a tua luz é chegada, a glória de Javé resplandece sobre ti. A ti virão os tesouros das nações e montadas em camelos trarão ouro e incenso para te presentearem (Is 60,5s). Finalmente, Miquéias, o profeta do Messias da descendência davídica, fala de maneira clara: E tu, Belém de Éfrata, embora a menor de todas as cidades de Judá, de ti sairá o Messias Libertador que o povo de Israel espera há tanto tempo. Ele trará a paz e a libertação para todos os povos (Mq 5,1s).
Dos Salmos, deduzimos que Maria de Nazaré tenha dado a estes, a preferência que o seu Deus sempre deu ao povo de Israel. Por isso, Maria proclama os salmos com Esperança e Fé. Ó Jerusalém, a ti vem o teu rei que liberta o indigente que clama e o pobre que não tem protetor. Ele os redime da astúcia e da violência, por isso, todos os reis da terra, se prostrarão diante dele (Sl 72,12s). Este é o dia que Javé fez para nós, exultemos e alegremo-nos nele.pois, o Salvador chegou entre nós (Sl 118,24).
Nesta Esperança Maria celebrava todas as festas de sua família biológica e de sua família de fé judaica. Hoje, Maria celebra esta festa de Natal, com mais de dois mil anos de distância, junto com seus romeiros e romeiras. Todos sabemos que Jesus se fez homem permanecendo Deus ao mesmo tempo. Por ser o Deus das pessoas mais necessitadas e humildes deste mundo, Ele quis entrar no nosso mundo escondido, participando do destino daquele que bate à porta, à noite, no frio, como fez José com sua mulher grávida, procurando lugar para que ela desse à luz com dignidade. Mas não encontrou lugar, a não ser numa pobre estrebaria vizinha. Lá havia palha, uma manjedoura, um boi e um burrinho que com seu bafo esquentaram o corpinho frágil do recém-nascido.
Assim Deus quis entrar em nosso mundo, silenciosamente, entrou pela porta dos fundos. Os grandes que habitavam em palácios das cidades de Jerusalém e de Roma, nada ficaram sabendo disso tudo. O Natal de Maria e de José, foi celebrado, não no meio de gente grande, mas no meio de pessoas simples como os pastores, e pobres como Maria e José, que batendo de porta em porta, ouviram estas duras palavras: “Não tem lugar para vocês”!
O que aprender deste Natal? Deus, quando quer se manifestar, não usa o espetáculo grandioso dos meios de comunicação, mas usa o silêncio simples das pequenas coisas da vida cotidiana. Foi assim que Ele veio e continua vindo para todas as pessoas do mundo inteiro. Mas, de maneira especial Ele vem para os pobres e simples de coração, porque assim Ele viveu no meio de nós. Nascendo entre os pobres, está sempre perto deles e a partir deles pode alcançar também os que têm riquezas materiais e não repartem com quem não tem. Dessa forma, ninguém fica de fora de sua vinda no Natal e ninguém é excluído de ser tocado pela presença de Deus que vem numa criança frágil e pequena como nós nascemos.
A reza que Maria fazia na Esperança para que Deus viesse libertar seu povo, se fez realidade através dela, no dia em que Jesus nasceu em Belém. Este mesmo acontecimento continua se atualizando em cada Natal que celebramos todos os anos. Mas sobretudo, vendo no Menino recém-nascido, aquele que pregou o Reino de paz e de bondade, e que por esse motivo morreu na cruz, mas ressuscitou para que todos nós tivéssemos olhos para ver a realidade com o coração. Assim podemos desfrutar da Graça Encarnada que nos vem no Natal.

MARIA NA CULTURA LATINO-AMERICANA E CARIBENHA

Maria na cultura latino-americana e caribenha
Significado e fé cristã
Lina Boff
Professora da PUC-Rio
Pós-doutorada pela Gregoriana de Roma

Introduzindo o assunto:
Antes de tudo queremos esclarecer dois conceitos básicos da nossa contribuição a este evento de estudo e reflexão: quando se fala da Comunidade divina fala-se da Trindade não como doutrina, mas como realidade, isto é, a Comunidade das Três Pessoas divinas está sempre presentes nos processos históricos e portanto ela é um fato; não depende das definições dogmáticas de várias tendências que se estabeleceram durante séculos; o Pai o Filho e Espírito Santo estiveram sempre presentes na história da humanidade, comunicando seu amor, inserindo o devir humano dentro da comunhão divina das três Pessoas. O segundo conceito que deve estar claro no nosso modo de pensar e de articular com a vida prática esta reflexão, é o de considerar a Maria histórica do NT, como a mesma Maria simbólica do universo cultural religioso do marianismo popular que povoa a cabeça dos povos do extenso Continente do Sul do Mundo.

1)- Quem é a Maria histórica

É a Maria de Gálatas 4,4 nascido de mulher, que é a Maria da narrativa dos quatro Evangelhos. É a mulher que age e re-age diante dos fatos históricos da nossa salvação. O primeiro deles é o da Encarnação libertadora. Este fato é o começo da nossa história salvífica com a presença humana de Jesus como ser histórico e como Pessoa da Comunidade trinitária, embora vivendo sua divindade ainda não revelada. Maria re-age a este fato pedindo explicação de como podia ser mãe sem ter tido relações conjugais com homem algum (cf. Lc 1,34); e age à explicação da teofania com quem estava falando, ao pronunciar seu SIM depois da explicação recebida e logo que vislumbrou o mistério de fé da revelação do Deus em quem acreditava e confiava plenamente como pessoa humana, age da mesma forma que cada um@ de nós poderia agir. Com a fé e o FIAT desta mulher do povo de Nazaré, tivemos a graciosa libertação de acabar com a distância que nos separava do Deus Pai e Espírito Santo, através de Jesus, o Filho.

O segundo fato histórico da nossa salvação é o do avanço na fé (cf. LG 58) que Maria realizou na sua vida terrena, sobretudo durante a vida pública de Jesus em que Ele pregava o Reino, na preparação da descida do Espírito Santo em Pentecostes que se plenifica na sua gloriosa assunção ao céu em corpo e alma (cf. LG 69). Nesta caminhada da fé terrena Maria re-age aos fatos salvíficos, auscultando a pregação do filho e guardando em seu coração, tudo aquilo que não compreendia; e age tomando as iniciativas que lhe eram inspiradas pelo Espírito que a continha e era contida por Ele.

Citamos algumas de tais iniciativas da Maria histórica, a Maria dos Evangelhos: visita Isabel e proclama o Cântico revolucionário do Magníficat tornando pública sua opção preferencial pelas massas pobres e excluídas (cf. Lc 1,53); chama a atenção do filho que se deixa ficar no templo discutindo com os teólogos da época sem dar nenhuma satisfação aos pais (cf. 2,48) ; percebendo a falta de vinho no casamento de Caná, comunica ao filho o fato e entra em contato relacional com os ajudantes da festa de Caná para saber como podia ajudá-los (cf. Jo 2,3.5); testemunha sua fidelidade ao Projeto salvífico da Comunidade trinitária ao pé da cruz de Jesus junto com suas companheiras de seguimento e o único homem que era João (cf. Jo 19, 25-27). Lá estava Maria de pé e não caída e chorosa; com sua presença age no retiro de preparação à vinda do Espírito Santo em Pentecostes (cf. At 1,14); e com sua adesão totalíssima à vontade da Comunidade divina, merece entrar na visão beatífica em corpo e alma, como sinal de esperança segura para o fim da nossa caminha terrena (cf. LG 68).

2)- As ‘Marias’ históricas de hoje

São aquelas que lutam do lado do povo e não se conformam com a situação que estamos vivendo. Nesse sentido elas se inspiram seja na Maria dos Evangelhos que na Maria do ícone de Atos. A mulher de hoje, arrastada pela atitude de Maria e inspirada na sua fé e coragem de aderir plenamente ao chamado do Pai e seu Projeto, acredita num modo novo de viver seu batismo, de testemunhar sua fé e de organizar a comunidade eclesial. A presença de Maria e as outras mulheres no evento Pentecostes criou e continua criando a nova comunidade do Espírito doado pelo Ressuscitado. Ora, nesta comunidade a mulher se identifica com a graça de ser chamada à condição original de reproduzir em sua vida e em seu corpo o gesto eucarístico da Comunidade divina pela Pessoa de Jesus Cristo. Alimentar seu povo com sua própria carne e sangue, foi a modalidade mais radical e intensa que a Comunidade divina encontrou para exprimir sua doação plena e deixar presente seu infinito amor no meio do povo que ama até à morte e ressurreição.

As ‘Marias’ de hoje realizam este gesto seja no ato da amamentação, no ato do martírio moral, psicológico, espiritual, como no martírio que exige versar seu sangue e água salvadores como se deu em Jesus Cristo. Parece-nos que aí está um veio promissor para a reflexão sobre o mistério abissal da Trindade como realidade histórica e como mistério de fé que ultrapassa a própria história. O mistério da presença real de Jesus Cristo no meio de seu povo que louva o Deus Trino da Nova Criação, proclama a revelação da Comunidade de Amor no seu modo de ser feminina e no seu modo de ser masculina, ao entrar em relação apaixonada e amorosa de coração-a-coração com seu povo.

3)- Significado para a nossa cultura: a Maria simbólica

Somos uma república mestiça e étnica culturalmente. Não somos europeus nem latino-americanos. A síntese de tantas antíteses é o produto singular e original que é o Brasil atual. Somos tupinizados, africanizados, orientalizados e ocidentalizados. Não fomos descobertos em 1500, mas continuamos encobertos e vivendo de um caldo de culturas distintas e ricas. Mas a nossa identidade está por ser construída ainda, sobretudo política e sócio-cultural. O Papa diz que temos uma identidade religiosa e cristã, mas nós precisamos caminhar e nos conscientizar muito ainda, muito mais do que tudo aquilo que o Papa disse a nosso respeito e a nosso favor.

Este é o quadro de fundo que nos leva a falar do marianismo popular que nasce da Maria histórica sim, mas que no universo cultural dos nossos povos ela passa a ser a Maria simbólica na cabeça e na prática de todos. As grandes divindades femininas ainda parecem povoar o universo simbólico e religioso do povo que vive numa cultura tão diversificada. A percepção da figura de Maria como símbolo e também como epifania simbólica, situa o povo para além de si mesmo e o leva não raras vezes, a viver e a desejar um mundo diferente do que vive. Esta simbólica é um dos fatores mais poderosos na inserção da fé popular da realidade definitiva em que acredita.

A nosso juízo, esta experiência devocional simbólica acrescenta à fé mariana popular, uma dimensão de relação com Maria extra-racional e imaginativa ou até mesmo fantasiosa, mas prenhe de fé e de esperança. Esta relação se dá entre a pessoa, a comunidade e o mundo cósmico. Diante de tal fato, a reflexão nos leva a criar uma nova antropologia continental, a qual se inscreva dentro de um reconhecimento capaz de criar no povo a consciência de que é ele que deve construir a sua história, criar sua cultura e construir sua identidade cristã e religiosa. A espécie humana tratada como não-pessoa, dá lugar à virada antropológica humana, inclusiva e libertadora pois, não há mais lugar para a submissão e o domínio. Faltando esta intuição de cada ser humano na interpretação dos elementos simbólicos vistos à luz da fé, nada é percebido em Maria como epifania simbólica.

4)- A mulher de hoje e sua nova consciência

Diante da proposta de uma antropologia humana, inclusiva e libertadora exige-se uma nova consciência antropológica. Na descoberta de muitos arquétipos ligados ao Feminino, a mulher de hoje costura os pedaços de vida sacrificada da humanidade inteira para resgatar o retorno da Grande Mãe e da Grande ‘deusa’, que traz consigo a misericórdia do nosso Deus, a ternura de suas entranhas divinas e a leveza de seu sopro perfumado do Espírito. A reflexão teológica feita na ótica da mulher cristã e católica em diálogo, nada reivindica quando sente o chamado que o Senhor lhe faz. O Senhor incluíu todas as mulheres na história da salvação, assim como o fez com Tamar (Gn 38, 14-18), com Raab (Js2,1), com a mulher de Urias (2Sm 11, 1-5), com Rute (3, 7-15), e de um modo consentâneo à própria missão, o faz com Maria de Nazaré ( Mt 1,16), independente da linhagem de cada uma. Não afirmamos, mas argumentamos: temos consciência de que o elemento feminino está sobre o altar.

Dois fatos mostram o avanço do significado de Maria na nossa cultura. São eles: a figura da Maria histórica em muitos e variados ambientes populares; estes se encontram já a caminho de uma conscientização e abertos a uma reflexão mariológica que se expressa numa prática pastoral, articulada no dia-a-dia de cada comunidade de fé. Este processo tende sempre mais colocar Maria como mulher companheira de caminhada rumo ao Pai, mulher do povo que constrói o Reino com ele e mulher lutadora pela mudança de condições de morte em condições de vida digna e agradável a Deus.

O segundo fato é referente ao avanço de toda a simbólica mariológica alimentada pela grande maioria do nosso povo simples e empobrecido, simbólica que se manifesta no culto de caráter devocional; este passa gradativamente a se manifestar no universo religioso de cada comunidade através de cantos, celebrações, orações e até mesmo nas alegorias representativas do carnaval brasileiro. Tudo isso é elemento formador de uma consciência crítica que o povo tem da Virgem que peregrina com ele na opressão, mas um povo cheio de fé e grávido de esperança por dias melhores.

Se há muito que criticar da figura simbólica de Maria no universo cultural e religioso dos nossos povos, pode-se afirmar também de que esta Maria tem muito a ver com o seguimento de Jesus Cristo. Os nossos povos encontram em Maria a figura feminina que os precede no caminho de Jesus Cristo e n’Ela encontram o sentido da própria luta em favor da vida com abundância. A comum-união da Maria histórica como Maria simbólica ou da Maria simbólica como Maria histórica, torna-se evento de fé autêntica quando o povo vive a experiência do Pai como o Deus sumamente benigno e sábio, o Filho como o Enviado do Pai e o Espírito Santo como o plasmador da pessoa humana. (cf. LG, 52.56). Excluir Maria desse processo ou ofuscar sua participação ativa que se faz mistério para a nossa limitada compreensão, é ignorar a interrelação ‘ad intra’ e ‘ad extra’ que é a vida da Comunidade divina.

Para concluir:

Entendemos que o significado de Maria na nossa cultura, à luz das Pessoas divinas em relação, é visto a ‘olho nu’, em três fatos que já têm sua história e sua caminhada distinta em todos os Continentes povoados da nossa Mãe-Terra. São eles:
1)- O nosso povo tem seu modo de cultuar a Maria que não exclui nenhuma das Pessoas da Comunidade divina. É a reflexão teológica que não consegue elaborar o desafio pastoral levantado pelo jeito que o povo tem de encontrar em Maria um canal de sua fé cristã e católica.
2)- A presença maciça das mulheres em quase todas as instâncias da vida humana com seus segmentos políticos, sociais, culturais e religiosos.
3)- A mudança de paradigma que mostra a queda do patriarcado na qual o homem começa sentir a necessidade de fazer acordo com a mulher, percebe que não é pelo domínio e nem pela determinação só dele que pode caminhar para frente. Mas homem e mulher Deus os criou (cf. Gn 1,27).

MARIA, FILHA PREDILETA DO PAI

Mãe Aparecida do Povo do Brasil
Amor – culto – cultura
Irmã Lina Boff
Professora da PUC-Rio, de Petrópolis e convidada pelo Antonianum de Roma
Prólogo: filha predileta do Pai
Esta frase evoca uma verdade fundamental da nossa fé cristã e católica, que é a filiação divina, nem sempre colocada na evidência teológica e mariana em que ela merece estar colocada. Se Maria é a filha predileta do Pai, como bem afirma o oitavo capítulo da Lumen gentium, perguntamos já de saída:
- Em que sentido Maria - a mulher do Antigo Testamento que abre o NT - vive esta filiação divina que a faz merecedora do título: filha predileta do Pai?
- De que modo se torna ela inspiração para a vivência da nossa filiação divina, no século XXI, da era digital e da globalização extremada?
- Qual sua influência nas expressões de amor ao Deus Uno e Trino da nossa fé, manifestadas no amor, no culto e na própria cultura?

Introduzindo o assunto
Maria é filha predileta. Em primeiro lugar é filha porque recebe de Deus o dom do seu amor que se manifesta na comunhão vital, pessoal e íntima que ela alimenta e vive com seu Deus. Esta intimidade que Maria vive ao longo de sua vida terrenal e ao mesmo tempo alimenta com seu SIM continuado, não é só física, mas uma comunhão de relação amorosa que ela recebe e acolhe de seu Deus e a esta relação se abre, inteiramente, a ponto se tornar uma comunhão histórico-salvífica, mediante a qual Deus a torna participante da história da salvação de todo o seu povo, e por graça da infinita liberalidade do Pai, a toda a humanidade. Esta concepção é a concepção bíblica predileta do Antigo Testamento que condensa a experiência histórico-salvífica do povo escolhido, na Pessoa do Messias que realiza o Projeto do Pai na história e o plenifica com sua morte e ressurreição.
Por isso, na base da tradição vétero-testamentária, há a eleição de Israel, pela qual o povo vive uma relação de filiação como um dom especial de Deus, porque o destino desta relação é escatológico, ou melhor, eterno. No Novo Testamento, a concepção de filiação divina que Jesus mesmo pouco utiliza em sua pregação do Reino, passa a ser palavra típica do cristianismo primitivo, que encontra sua raiz no batismo de Jesus: Tu és meu filho querido, eu, hoje, te gerei (Lc 3,22); na oração de agradecimento ao Pai pela missão dos setenta e dois discípulos, na qual repete a invocação Pai, por cinco vezes: Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece quem é o Filho se não o Pai, e quem é o Pai se não o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar (Lc 10, 21-22). A palavra Filho nesta breve perícope, é empregada por três vezes e em relação ao Pai, com quem o Filho entra na intimidade que plenifica a vida temporal e aponta para para a transcendência dos fatos históricos do povo de Israel. Pois, as coisas que o Pai ocultta às pessoas sábias e entendidas, não são facta bruta, mas vêm carregados de sentido e de graça salvadora.
A Carta aos Hebreus afirma, estar acima a dos anjos a ação de Jesus na história, porque veio ocupar-se, como Filho dileto, Filho querido da descendência de Abraão, por isso o autor sagrado repete: Tu és o meu Filho dileto, eu hoje te gerei! (Hb 1,5).
Jesus se sente Filho, e assim se relaciona com o Pai. É esta consciência que o consola quando se sente abandonado e rejeitado pela humanidade insana. A consciência que Jesus tem desta realidade e que nos dá a conhecer, de que só o Filho conhece, verdadeiramente, o Pai e de que só o Pai, conhece, verdadeiramente, o Filho, nos leva a uma afirmação que tem fundamento na eleição do povo de Israel. Jesus pertence ao povo de Israel, o povo eleito, e Ele é o escolhido dentre o povo eleito para dar a conhecer o mistério do Pai que ficou escondido há séculos e só agora, na pessoa do Filho dileto, é conhecido e anunciado a todas as nações (cf. Rm 16, 25ss). A eleição, a dileção que o Pai tem para com Jesus, é o fato de que Ele, como Filho, se abre de tal forma ao Plano do Pai, que este pode contar com Ele para a realização de seu Plano de Salvação.
Jesus, portanto, é o Filho dileto do Pai, é o preferido na estima e na afeição, é querido e especialmente, amado. Na prosa do padre escritor, Manuel Bernardes, presbítero da Congregação do Oratório de São Felipe Néri, em sua obra, Exercícios Espirituais, do século XVIII, utiliza o superlativo da palavra dileto para falar da íntima dileção de Deus Pai para com seu Filho:
Já que meu Deus foi tão misericordioso para com os homens, que os quis ensinar pela própria pessoa de seu diletíssimo Filho, ... eu quero, mediante a sua graça, aprender por este exemplar .
Pode-se evidenciar a intensidade da linguagem e a profunda mística que envolve este escritor clássico da prosa portuguesa. Enquanto que a palavra predileção, que também deriva da língua latina e que quer dizer quase a mesma coisa, pode ser explicada, em sua etimologia, da seguinte forma: estar diante da pessoa que se ama. A partícula pre, no latim, denota estar diante de, e dileta, dileção, significa a pessoa preferida na estima, na afeição, querida, especialmente, amada, palavra só dada a Jesus. Por derivação do amor que o Pai devota ao Filho, Maria é a filha pré-dileta do Pai, e é mãe do Filho diletíssimo do Pai, que é Jesus.

A perspectiva do Antigo Testamento
A linhagem bíblica de Maria de Nazaré, denominada pelos padres do Concílio Ecumênico Vaticano II, filha predileta do Pai (LG 53), por estar unida ao Pai, encontra-se ao mesmo tempo caminhando com a humanidade, filha de Adão e Eva, participando da mesma sorte e do mesmo destino. Este vínculo não se dissolve porque está intimamente, conectado com a missão desta mãe – a de marcar a História da Salvação com seu SIM incondicional e livre.
Nesse sentido, Maria está presente e vem da linhagem das Mulheres do Êxodo, que tementes a Deus, pouparam a vida de tantos meninos hebreus, desde o nascimento entre as duas pedras, com a finalidade de manter a presença numerosa dos hebreus em meio a um povo estranho (cf. Êx 1, 15-22). Vem da linhagem da filha do Faraó que arriscou sua nobreza terrena para salvar o Menino tirado das águas, prenúncio de libertação do povo escolhido por Javé (cf. Ex 2, 5-10).
Estas mulheres mostram que não querem a vida só para elas, mas têm consciência de que foram criadas para viverem como filhas e filhos do Criador, que é Pai de todos: poupam a vida dos meninos hebreus, porque a vida é um direito que pertence ao Deus Criador que tirou tudo do nada e não aos homens e nem às mulheres. Deus escolhe pessoas que cuidam da vida. E estas pessoas são mulheres de todas as classes sociais. Nesse contexto, encontramos as parteiras Sefra e Fuá e a filha do Faraó, que segundo a historiografia da exegese contemporânea, aparecem com nomes incertos, mas são apresentadas como mulheres que defenderam a vida arriscando a própria vida e a condição em que eram colocadas.
A filha predileta do Pai, é da estirpe das numerosas filhas de Jerusalém, como narra o mais belo Canto que celebra o amor de um Amante e de uma Amada-amante, que se aproximam e se distanciam, se procuram e se perdem, se buscam e se encontram, mas, se unem no amplexo do amor do meio-dia que não tem sombras, numa interpretação alegórica do amor humano que transcende a terra para chegar ao céu (Gregório de Nissa comentando o Cântico dos Cânticos em Ct 1,5+8,4).
A filha predileta do Pai, vem da árvore genealógica da tradição israelítica, em que a figura feminina protagoniza o momento de esplendor e de projeção que aponta para o sentido universal e coletivo da presença de Javé em meio a seu povo. As filhas de Israel são carregadas sobre as ancas para celebrar o retorno do exílio e o esplendor da cidade santa e sagrada pelo povo; é filha que recebe a luz de Javé, trazendo as riquezas da terra e as riquezas da glória e esplendor do Deus que edifica, enaltece e realiza as coisas que promete (cf. Is 60,4).
A filha predileta do Pai, é a filha de Sião, membro do povo de Israel a quem é dirigida a profecia com estas palavras: Farei de ti eterno motivo de orgulho, motivo de alegria, de geração em geração (cf. Is 60,14). O profeta acrescenta ainda: Serás chamada Procurada! Cidade habitada! (Is 62,12).
A filha predileta do Pai vem de uma aproximação das várias expressões bíblicas do Êxodo e dos Profetas. Com a expressão “filha predileta do Pai”, pode-se deduzir que esta se encontra na figura de Maria, a profetisa, irmã de Moisés, que pega no tamborim e todas as mulheres a seguem com seus tamborins também, para cantar e dançar a libertação de seu povo. Elas estão nas expressões que o autor sagrado tanto repete nesta narrativa: Os filhos de Israel, Israel (cf. Êx 14-15), expressões que têm como desfecho a Maria do tamborin, que toma a iniciativa de proclamar a Javé, vestido de glória pelos seus feitos (cf. Êx 15,21). Nesta narrativa ela não é chamada de filha, mas pertence ao povo de Israel que se organiza com suas filhas e filhos, para dar o golpe no Faraó e marchar em direção à Promessa feita a Abraão, a Isaac e a Jacó. Esta é a filha predileta do Pai que participa, com seu povo e seus chefes, incluindo e dando igualdade de dignidade filial a todos e a todas.
A filha predileta do Pai, vem da linhagem profética do espírito de Javé. Aqui, ela não pode deixar de estar na efusão do espírito profético sobre todo o povo de Deus, preanunciado pelo profeta Joel e proclamado por Pedro, em seu primeiro discurso aos povos de tantas proveniências, no dia de Pentecostes (Cf. Jl 3, 1-5 e At 2, 16ss). Joel fala desta nova criação, afirmando que Javé derramará seu espírito sobre vossos filhos, e, dirigindo-se às filhas de Israel, o profeta é claro: ... e vossas filhas profetizarão. Esse espírito da profecia será derramado, igualmente, sobre as escravas (Jl 3, 1-2). Não é esta a filha predileta do Pai que tem a coragem de inaugurar novos tempos de inclusão e igualdade para todos e para todas? É no espírito de Deus que tem origem a filha predileta do Pai. Por isso, ela é uma personalidade coletiva que ultrapassa a própria figura e a própria corporalidade com que foi plasmada pelo Pai, Criador de tudo e de todas as coisas.
A filha predileta do Pai, é uma personalidade simbólica, portanto, porque coletiva. Não é uma pessoa privada, mas sua representavidade cobre todo o povo de Israel e se torna uma protagonista ao participar na realização de sua libertação dos opressores. Ela está na arte, na música, na pintura e na ópera que perpassa os tempos e as modas. A ópera de George Frederic Handel (1742), intitulada MESSIAH – O Messias – por exemplo, é apresentada com vigor e majestade, na sua forma narrativa, adaptando as cenas destes textos bíblicos para fazer um espetáculo que perpassa os séculos e continua, todavia, até em nossos dias, enchendo-nos de contemplação e mística, Handel com seu veio musical e seu pendor religioso e genial, nos anuncia que o Reino está no meio de nós, através da sua narrativa que perfila os traços característicos do Filho diletíssimo do Pai, figurado em Isaías; e os traços da filha predileta do Pai, que participa do amor que o Pai dá ao Filho e que caminha conosco pelos caminhos da vida dos nossos povos.
Finalmente, a filha predileta do Pai, é celebrada de forma lírica nos momentos da liturgia israelítica, em que povo refresca a memória de sua caminhada histórica feita de eventos e de fatos que marcam, continuamente, a progressiva revelação do Deus da vida e da razão de viver do povo. Esta lírica religiosa nos foi conservada pelos Salmos. Estes falam da filha predileta do Pai, como a filha de Judá, que exulta porque o Senhor está presente com sua justiça em todas as cidades. A filha de Judá é aquela que anuncia a grandeza de Javé desde a montanha sagrada de Sião. Por isso, é a filha de Sião que une e reúne todos os povos no louvor de um único Senhor e Deus (cf. Sl 48,12).
A filha predileta do Pai é semelhante às colunas que sustentam o palácio e sua beleza, as quais lembram as cariátides gregas, figuras femininas que amparam a justiça e o direito do rei.
Mas esta filha predileta do Pai, ao mesmo tempo que embeleza e guarnece os celeiros do Rei Eterno, com sua participação à vida divina como filha, evoca a prosperidade messiânica para todo o povo de Israel, que apostou em tantos reis terrenos e teve que suportá-los na sua iniqüidade, por tantos séculos e até milênios. Esta filha amada, é a predileta do Pai, porque aponta para a intercessão do Filho junto ao Pai, intercessão da qual participa, trazendo as riquezas messiânicas da liberalidade de Deus Pai para com seus filhos e filhas que somos todos e todas nós.

Como tudo isso se atualiza na perspectiva do Novo Testamento
Comecemos pela mulher que se destaca pela missão que Deus lhe pediu. A mulher escolhida para ser a mãe do Messias, o Enviado do Pai, o Filho diletíssimo do Pai, não podia deixar de ser a filha predileta deste Pai, que revela suas entranhas de mãe, no dizer dos profetas , e no dizer da pregação do Reino feita por Jesus. Ele toma o exemplo da mulher que se alegra ao encontrar a moeda perdida, ao fazer o pão que cresce com o fermento, ao admirar-se da fé indevassável da cananéia e da coragem das mulheres da primeira hora na manhã da ressurreição. A todas estas mulheres, na pessoa das últimas – as da manhã da ressurreição – recebem do Ressuscitado a missão de serem anunciadoras da Boa Nova da vida trazida pelo Ressuscitado, que se mostrou por primeiro, às mulheres e a estas deu-lhes a missão de anunciarem aos discípulos, seus irmãos, a Boa Nova da ressurreição do Filho de Deus, o Cristo Senhor que se torna o doador da vida divina. A esperança do povo de Israel começa a se realizar na medida em que as pessoas aderem a esta Grande Novidade.
A predileção de Deus com relação a Maria, a humilde serva do Senhor, evoca os primeiríssimos tempos da insurreição do ano 70 d.C., em que sempre se constata a presença do servo entre os hebreus. Como filha predileta do Pai, Maria anuncia a livre iniciativa do Pai com relação a sua vida e a sua missão junto ao povo de Israel ao se proclamar serva do Senhor; e é filha predileta porque grandes coisas fez em mim aquele que é todo poderoso.
Maria é filha predileta do Pai porque crê na ação da providência que lhe faz tomar consciência de que o filho que ela gera de suas entranhas é o Filho de Deus. Ela é a predileta porque se encontra sempre presente nas discussões mais aferradas que se estabelecem em torno à origem humana e divina de seu filho, que até na metade do II século, o problema genealógico do Cristo, não estava ainda apagado, na Igreja daquela época. E hoje, a quantas estamos?
A filha predileta do Pai, no Novo Testamento, portanto, se encontra no contexto e na história factual da mulher que busca Jesus porque Ele responde às profundas interrogações que ela mesma se coloca diante de seu Deus e de seu jeito de pronunciar e invocar seu nome santíssimo. Nesta busca a mulher – a filha predileta do Pai do tempo de Jesus – entra em relação direta e encontra-se com Jesus, e tem com Ele uma relação que ultrapassa a dimensão humana que a leva a fazer uma experiência de tocar o mistério que transcende a própria relação humana. A imanência manifestada por Jesus é vivida, pela filha predileta do Pai do Novo Testamento, como transcendência que redireciona a vida e a missão desta mulher.
A narrativa de Marcos nos fala de uma certa mulher que sofria de um fluxo de sangue há doze anos. É uma mulher doente, é a mulher da clandestinidade, vai além da lei, faz o papel de “penetra”, porque se aproxima de Jesus num momento em que muitas pessoas acorrem ao mesmo tempo à pessoa dele Jesus a chama de minha filha, e a presenteia com a notícia da cura: ... a tua fé te salvou; vai em paz e fique curada desse teu mal (Mc 5, 34.35). Na versão da comunidade de Mateus, encontramos esta expressão: Ânimo, minha filha, tua fé te salvou! (Mt 9,18). Jesus percebe a angústia e a ansiedade com que esta mulher toca a orla de seu manto em meio aos discípulos de João, que um após outro, intervém, incluindo um chefe de sinagoga que implora pela filha já morta, sem contar os curiosos que se aglomeram. Tudo está acontecendo ao mesmo tempo.
Em meio a esse tumulto, a mulher apresenta-se sozinha, ninguém a acompanha, e ela tem consciência de como está sendo vista e tratada por todos os que estavam aí: ela é uma pessoa “impura”, que a Lei a exclui por ser “impura”. Mas Jesus une e reúne esta mulher à coletividade que o cercava e a trata com a mesma consideração dada a todas as pessoas que O solicitam, naquele momento. Ela a inclui na sociedade que não quer saber dela.
A mulher da doença que a envergonha diante de seus conterrâneos e conterrâneas, sai da exclusão social e religiosa e da exclusão econômica também, pois havia gasto todos os seus bens sem resultado. A cura é atribuída à sua persistência e à sua fé: Ânimo, minha filha, a tua fé te salvou! (Mt 9,22). O encontro desta mulher com a cura definitiva, é fruto de sua invisibilidade, clandestinidade e seu silêncio cheio de fé, três pequenas coisas que roçam, que tocam o manto, de leve, do Messias e guardam dentro de si poderes de infinito.
Os pequenos e grandes gestos feitos por Jesus, nos levam a pensar que tais gestos são verdadeiros “sinais” que revelam o “rosto” do Pai que está presente na pessoa do Filho que se aproxima das mulheres. Não seriam estas as filhas prediletas do Pai do tempo de Jesus? A hemorroíssa encontra-se com Jesus às escondidas, daí a frase encorajadora dele: Ânimo, minha filha! E sem querer, nem premeditar, o ato desta mulher vem a público.
Em outro contexto descrito por Lucas, Jesus vê uma mulher recurvada de nascimento, fora do templo fazendo sua prece a Javé, porque, segundo a lei de Moisés, não lhe é permitido o acesso ao lugar sagrado pela deficiência com que nasceu. O ensinamento de Jesus dá um novo sentido a esta lei e retoma a fé exemplar de Abraão, e com autoridade, sem rodeios, contrapõe: Esta filha de Abraão, não tem o direito que o boi e o asno do estábulo têm, de beber água em dia de sábado? (cf. Lc 13,14s). Esta mulher nada pede a Jesus. É Ele que se aproxima para tirar-lhe o estigma que a excluía do lugar sagrado, que para o judeu ter contato com o Templo de Jerusalém significava observar, rigidamente, sérias prescrições ditadas pela Torá. Esta filha de Abraão, isto é, filha da herança deste povo fiel a Javé, tem o direito de ser incluída junto com todos os seres humanos que aí se encontram, no templo sagrado e de viver a lei que foi dada para todo o povo, não para estar fora do templo, mas dentro dele e da sua sacralidade.
Para chegar a esta inclusão, Jesus não olha para o templo e nem para o tempo considerado, segundo a religião do povo, tempo sagrado. O sagrado foi feito para servir à pessoa humana necessitada e não para submeter esta pessoa ao sagrado. O sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado (cf. Lc 13,16). Esta filha de Abraão lembra a dignidade humana e o direito, ela pertence à nação eleita, à descendência abraâmica. Ela não é apenas uma descendente da fé abraâmica, mas é da descendência messiânica. Ela é da mesma árvore genealógica, da mesma estirpe de Abraão, mas participa da descendência do Messias esperado pelo. Neste episódio, Jesus percebe, claramente, que a plenitude e o cumprimento da lei, passam também pela transgressão do sagrado, para que haja misericórdia, inclusão, vida e não sacrifício. Este é o espaço sagrado da vida.
Em João e sua comunidade, a filha predileta do Pai é um nome coletivo, é a filha de Sião, o povo eleito, o povo da Aliança que recebe seu Rei-Messias montado num jumentinho (cf. Jo 12,15). O autor resgata a memória do povo que deve voltar a retomar a doutrina messiânica que ressurge da casa de Davi. Há uma preocupação em apresentar a humildade do Messias que está para chegar, em vestes simples e atitude pacífica, contrapondo-se aos reis históricos que o povo teve antes. Esta figura é retomada também por Mateus e Marcos em suas narrativas da paixão. A preocupação que o profeta Zacarias mostra com a restauração do culto do templo, transparece também no Messias que vem para celebrar a aliança que o povo deve retomar.
Concluindo nossa reflexão, podemos afirmar que Maria vem na linhagem das grande mães do povo de Israel, das proféticas matriarcas que sempre se colocaram do lado do povo e das mulheres que no tempo de Jesus, buscavam n`Ele aquilo que a mãe sempre busca para salvar seus filhos e filhas. Maria está presente nas “Marias” de hoje e como discípula-mãe, nos acompanha precedendo-nos no seguimento de Jesus, seu filho e Filho do Pai Eterno. Amém!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Jonas - Mês da Bíblia 2010 - Luis Negri

Setembro é o Mês da Bíblia para os católicos - para os evangélicos o Dia da Bíblia é, no Brasil, o segundo domingo de dezembro.
O Mês da Bíblia surgiu há 39 anos [1971], por ocasião do 50º aniversário da Arquidiocese de Belo Horizonte. Desde então tem destacado a importância da leitura, do estudo e da contemplação das Sagradas Escrituras.
Na verdade, o Mês da Bíblia contribuiu muito para o desenvolvimento da Pastoral Bíblica no âmbito paroquial e diocesano.
A Comissão Episcopal responsável pela Animação Bíblico-Catequética, juntamente com as Instituições Bíblicas, propõe para o ano de 2010, no mês da Bíblia, o estudo e a meditação do Livro de Jonas, com destaque para a evangelização e a missão na cidade .
A V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, em Aparecida, SP (2007), também destacou o valor do mandato missionário.
Os encontros sobre o livro de Jonas ajudarão a Igreja a vivenciar o mandato missionário no enfrentamento de novos desafios, isto é, anunciar o Evangelho do Reino a outros lugares onde se encontram muitos batizados não evangelizados.
Na linha do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, o livro de Jonas reforça a universalidade do amor de Deus. A escolha deste livro bíblico para o mês de setembro tem por objetivo tirar os católicos do comodismo e do julgamento preconceituoso e os encaminhar para a evangelização da cidade.
O profeta
Sobre a figura de Jonas, são poucas as informações que temos. Conhecemos este profeta por ter sido engolido e ter passado três dias e três noites no ventre de um grande peixe (Jn 2,1).
No segundo livro dos Reis, temos algumas informações sobre Jonas. Nasceu em Gate-Hefer, perto de Nazaré, a cidade de Jesus, Maria e José. Conforme 2Reis 14,25-27, profetizou no Reino do Norte, durante a época de Jeroboão II, rei de Israel, no séc. VIII a.C. (783a.C.-743 a.C.) sendo contemporâneo dos profetas Amós, Miquéias e Naum.
O Livro
O livro não foi escrito por Jonas. É uma novela popular. Uma parábola que convida o povo a uma profunda conversão.
No segundo período persa (445 a.C.-333 a.C.), os sábios eruditos recolhiam os provérbios populares antigos organizando-os em grandes coleções. Paralelamente a esse trabalho, o povo das aldeias criava histórias, novelas, parábolas e teatros para criticar o fechamento da elite religiosa comandada por Esdras.
O livro de Jonas, assim como Jó, Rute e Cântico dos Cânticos, denuncia o fechamento de Israel em relação aos outros povos.
Os sábios contavam suas histórias projetando no passado seus conflitos e lutas. Como foi dito, Jonas é um personagem do século VIII a.C., quando Jeroboão II era rei de Israel (783 a.C.-743 a.C.). Nínive já tinha sido destruída antes do exílio babilônico. O povo buscava luzes nessas histórias passadas para compreender melhor sua missão no contexto histórico em que viviam. Os primeiros cristãos viam na figura de Jonas, que passa 3 dias no ventre da baleia e anuncia a palavra de Deus em Nínive, um símbolo da ressurreição de Cristo e salvação da humanidade. Deus salvou o profeta para salvar os gentios. Deus ressuscitou Cristo para salvar todos os povos.
A parábola de Jonas traz-nos este grande ensinamento: Jonas é missionário rebelde da comunidade, que se recusa a sair para anunciar a salvação aos de fora. Enquanto dorme no navio, os marinheiros estrangeiros se empenham para salvar o que podem e rezam muito a seus deuses pedindo socorro. Enquanto Jonas resiste contra a ordem de Deus para pregar em Nínive e depois torce para que a cidade seja destruída, os ninivitas se convertem e alcançam a salvação que vem de Deus. Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva (Ez 18,23.32).
Na Bíblia, o livro de Jonas faz parte da coleção dos livros proféticos. Está entre os livros de Abdias e Miquéias. Mas em vez de anúncios, denúncias ou oráculos, o que vemos é uma narrativa no estilo de uma parábola ou novela.
Na tradição judaica o livro de Jonas é lido no Dia do Perdão (Yom Kippur). Neste dia os judeus fazem um jejum de 25 horas com muita oração. Celebram a grande misericórdia de Deus.
Na tradição cristã, a história de Jonas é contada nas primeiras comunidades. A passagem de Jonas no ventre do peixe prefigura a morte e ressurreição de Jesus (Mt 10,40).
A história de Jonas é lida na liturgia da Igreja Católica na 27ª semana do Tempo Comum na 2ª, 3ª e 4ª feiras (Jn 1,1-2.11; 3,1-10; 3,10-4,11) e na Quaresma (Jn 3,1-10) para lembrar o tempo de penitência e conversão.
Diferentes interpretações
A – Interpretação histórica
Muitos interpretam os acontecimentos narrados no livro de Jonas como se fossem fatos históricos. Consideram que tudo o que está escrito ali é história verdadeira, caso contrário a Bíblia estaria mentindo.
Provas arqueológicas mostram que, historicamente, Nínive não era tão grande como vemos em Jn 3,3 e, segundo a História das Religiões, Nínive nunca se converteu. Além do mais, um homem não poderia sobreviver no ventre de um peixe durante três dias.
Este tipo de interpretação dispensar-nos-ia de uma reflexão mais ampla e profunda do livro.
B – Interpretação alegórica
Nínive é símbolo do mundo gentio. Jonas é Israel que se recusa a cumprir sua missão (fuga para Társis). O peixe que engole Jonas simboliza o exílio da Babilônia. O reenvio de Jonas para a missão é símbolo da missão dos repatriados. O mal-estar de Jonas em não aceitar o perdão dos gentios simboliza o povo que volta do exílio fechado em suas tradições como Neemias, Esdras, Joel e Abdias.
Restam ainda as perguntas: quem são os marinheiros do navio que atiram Jonas no mar e se convertem a Iahweh? Qual o significado da mamoneira que nasce e seca de repente, tirando o passageiro conforto de Jonas?
Um exegeta chamado Smith diz que a mamoneira seria Zorobabel. Mas, segundo Luiz Alonso Schokel, esta interpretação é arbitrária e por isso não merece crédito.
C – Parábola
O que o livro de Jonas pretende ensinar? Há várias respostas:
a) A relação entre eleição e universalismo.
b) A atitude que Israel deve adotar em relação aos estrangeiros.
c) Mostrar a misericórdia de Deus que não cumpriu as antigas ameaças contra Nínive.
d) O relato quer mostrar as relações entre o profeta e Deus; o chamado à conversão ou à atividade missionária.
e) A interpretação que se impõe apresenta o livro de Jonas como chamado ao universalismo contra o nacionalismo e a xenofobia do período pós-exílico.
D – Interpretação cristã
Na cristologia das primeiras comunidades, apenas a permanência de Jonas no ventre do peixe é comparada à descida de Jesus ao Xeol (Mansão dos Mortos) em Mateus 12,38-45.
O paralelismo não vai além disso, pois Cristo jamais foge de Deus e de sua presença, não opõe resistência ao chamado de Deus, não desce ao seio da terra (Xeol) por causa de seus pecados, não se revolta contra Deus. Como podemos ver, Jesus Cristo é o contrário de Jonas, abre a salvação para todos os povos. Jesus segue os desígnios de Deus. Faz o que Jonas se recusava a fazer: salvar a humanidade toda.
Estrutura do livro
Primeira parte – capítulos 1-2 Segunda parte – capítulos -3-4
1,1-2: o chamado de Jonas. 3,1-2: o chamado de Jonas.
1,3: Jonas levanta-se e foge 3,3: Jonas levanta-se e vai a Nínive.
1,4: Ação de Iahweh. 3,4: Ação de Jonas – pregação.
1,5: Ação dos marinheiros. 3,5: Ação dos ninivitas – jejum.
1,6: O capitão reconhece o poder da divindade na tempestade do mar. 3,6-8: O rei reconhece o poder de Deus, faz penitência e proclama um jejum.
1,7-13: Os marinheiros descobrem o culpado. 3,8b: A ordem para a conversão.
1,14: Os marinheiros rezam a Iahweh. 3,9: A oração move a ação de Deus.
1,15: Jonas é lançado ao mar. Cessa a tempestade. 3,10: Deus se arrepende e não destrói Nínive.
1,16: Os marinheiros temem a Iahweh. 3,5: Homens de Nínive creram em Deus.
2,1: Iahweh salva Jonas. 4,1.5.8c: Jonas se revolta contra Iahweh.
2,2-10: Jonas reza um salmo e agradece a sua salvação. 4,2-4: Jonas reza.
2,11: Iahweh responde – Jonas é devolvido à terra firme. 4,4.6-8b.9: Deus responde a Jonas com uma pergunta.
Quando foi escrito o Livro de Jonas?
Os judeus consideram Jonas um profeta do século VIII (2Reis 14,25), pois é colocado entre os livros de Abdias e Miquéias. Alguns estudiosos situam o livro de Jonas no século V, período persa, como reação ao nacionalismo exagerado de Esdras e Neemias. Outros o situam no início do período grego, final do século IV.
O objetivo do livro é transmitir um ensinamento às pessoas que vivem no tempo em que o livro foi escrito.
Chaves de leitura
a) Nacionalismo Judaico
 Deportações e destruição do Templo de Jerusalém pelo rei da Babilônia em 597a.C. e 586a.C.
 Exílio da Babilônia. Exilados na Mesopotâmia e em Judá.
 Decreto de Ciro rei da Pérsia. Os que estivessem longe de suas terras poderiam retornar.
 Surgiu no exílio a idéia do povo eleito para conservar a unidade e identidade do povo de Israel.
 Depois do Exílio o grupo que retorna para Judá reconstrói o Templo e Jerusalém.
 A reconstrução da comunidade gira em torno da Lei e do Templo.
 Sob Esdras e Neemias (450 a.C.-350 a.C.) a comunidade se fecha. Os judeus se consideram o único povo eleito, santo e privilegiado por Deus.
 Esta visão nacionalista gera exclusão dos estrangeiros que vivem no meio deles.
 Jonas representa este povo fechado que se recusa em aceitar a salvação de outros povos.
b) Os estrangeiros
 Estes, muitas vezes, vivem mais de acordo com a justiça.
 A teologia do Templo exclui aqueles que vivem distantes dele. Quanto mais longe do Templo, mais longe de Deus.
 Alguns sábios israelitas discordam desse fechamento e propõem a inclusão dos estrangeiros e dos pobres como herdeiros das Promessas: livros de Rute, Jô, Jonas, Terceiros Isaías e alguns salmos.
c) A presença de Deus não está restrita ao Templo
 Quando Jonas reza no ventre do peixe, está olhando para o Templo. Ainda não mudou de idéia.
 O livro de Jonas mostra Deus agindo na tempestade do mar, nos elementos da natureza. Um Deus que ultrapassa as fronteiras de Israel: está entre os exilados na Babilônia, em Jope, no navio, em Nínive.
 No Terceiro Isaías Deus se volta para o pobre, o abatido. Deus está presente onde reina o amor e a justiça.
d) Deus perdoa até o pior dos inimigos do povo de Israel
 Nínive é símbolo do império mais opressor de todos os tempos. Os assírios eram famosos por sua violência e crueldade contra os povos dominados: tributos, ameaças, deportações, destruições de cidades e aldeias.
 Israel tinha passado por essa dominação durante a monarquia. O reino do Norte, Israel, e o do Sul, Judá, sofreram a mesma dominação.
 No tempo em que o livro foi escrito não existem mais Nínive nem a Assíria, mas os pobres continuam debaixo da opressão de outros impérios: persa e grego.
A Mensagem de Jonas.
 Ao contrário de muitos profetas que diriam profecias contra as nações, Jonas revela uma mensagem de misericórdia em relação a Nínive, símbolo do imperialismo mais cruel contra o povo de Israel (Isaías 10,5-15; Sf 2,13-15; Naum). Nínive representava os opressores de todos os tempos. A eles Jonas chama à conversão e a eles Deus concede o perdão.
 A mensagem deste livro é muito mais difícil de aceitar: Deus ama também os opressores – “faz nascer seu sol igualmente para maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5,45).  A atitude de Jesus em relação a Zaqueu, cobrador de impostos, pode ajudar-nos a entender a mensagem do livro de Jonas. A aproximação voluntária de Jesus a Zaqueu provoca-lhe a conversão e a salvação (Lc 19,1-10).
 No Livro de Jonas há um interesse divino em salvar o que estava perdido. O mesmo acontece no relato de Lucas referente a Zaqueu.
 A conversão dos ninivitas não significou que eles mudaram de religião. Mudaram de vida, “de sua má vida e de suas ações violentas”. A palavra hebraica hamas sintetiza nos textos proféticos as mais diversas injustiças sociais. Esta deve desaparecer mediante a conversão.
 Na mensagem do livro de Jonas, cabe aos opressores ninivitas a conversão e a aceitação de que Deus os perdoe. Jonas representa o povo oprimido que sofreu a exploração, a perseguição e o exílio da parte dos opressores.
 Os judeus esperavam vingança da parte de Deus contra os inimigos. Deus propõe-lhes a conversão. Isto revolta Jonas que prefere morrer a aceitar esta proposta de Deus. Enquanto Jonas prega a destruição de Nínive, Deus concede a salvação à cidade e a seus habitantes.
 O livro de Jonas quer mostrar a infinita misericórdia de Iahweh capaz de perdoar o pior dos inimigos.
 Isso nos tempos de Jesus e até hoje continua um grande desafio. Onde está Jonas hoje?
 O livro mostra, enfim, que a misericórdia e a graça de Deus não têm fronteiras.
 Abrir-se para o outro, o diferente, superar preconceitos, desenvolver atitudes de solidariedade e misericórdia são passos que exigem uma conversão contínua em nossa vida.
 Que o Deus da ternura e da compaixão seja nossa força e nos inspire diante de tantos desafios que encontramos nesta grande cidade, mais complexa do que Nínive.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Dez características da leitura popular da Bíblia no Brasil

Dez Características da leitura popular
Trecho extraído do artigo sobre "A Leitura Popular da Bíblia no Brasil", 11/8/05, por Carlos Masters e Francisco Orofino. Leia na íntegra: www.cebi.org.br/artigos

1. A Bíblia é reconhecida e acolhida pelo povo como Palavra de Deus. Esta fé já existia antes da chegada do que se convencionou chamar leitura popular. É nesta raiz antiga que se enxerta todo o nosso trabalho com a Bíblia junto do povo. Sem esta fé, todo o método teria de ser diferente. “Não es tu que sustentas a raiz, mas a raiz sustenta a ti” (Rm 11,18).

2. Ao ler a Bíblia, o povo das Comunidades traz consigo a sua própria história e tem nos olhos os problemas que vêm da realidade dura da sua vida. A Bíblia aparece como um espelho, "sím-bolo" (Hb 9,9; 11,19), daquilo que ele mesmo vive. Estabelece-se uma ligação profunda entre Bíblia e vida que, às vezes, pode dar a impressão de um concordismo superficial. Na realidade, é uma leitura de fé muito semelhante à que faziam as primeiras comunidades (cf. At 1,16-20; 2,29-35; 4,24-31) e os Santos Padres.

3. A partir desta ligação entre Bíblia e vida, os pobres fazem a descoberta, a maior de todas: "Se Deus esteve com aquele povo no passado, então Ele está também conosco nesta luta que fazemos para nos libertar. Ele escuta também o nosso clamor!" (cf. Ex 2,24;3,7). Nasce assim, imperceptivelmente, uma nova experiência de Deus e da vida que se torna o critério mais determinante da leitura popular e que menos aparece nas suas explicitações e interpretações. Pois o olhar não se enxerga a si mesmo.

4. Antes deste contato mais vivido com a Palavra de Deus, a Bíblia ficava longe da vida do povo. Era o livro dos “padres”, dos “pastores”, do clero. Mas agora ela chegou perto! O que era misterioso e inacessível, começou a fazer parte da vida quotidiana de crianças, mulheres e homens empobrecidos. E junto com a sua Palavra, o próprio Deus chegou perto! “Vocês que antes estavam longe foram trazidos para perto!” (Ef 2,13) Difícil para um de nós avaliar a experiência de novidade e de gratuidade que isto representa para as pessoas empobrecidas.

5. Assim, aos poucos, foi surgindo uma nova maneira de se olhar a Bíblia e a sua interpretação. Ela já não é vista como um livro estranho que pertence ao clero, mas sim como o nosso livro, "escrito para nós que tocamos o fim dos tempos" (1Cor 10,11). Às vezes, ela chega a ser o primeiro instrumento de uma análise mais crítica da realidade. Por exemplo, a respeito de uma empresa que oprime e explora o povo, o pessoal da comunidade dizia: "É o Golias que temos que enfrentar!"

6. Pouco a pouco, cresce a descoberta de que a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo principal da leitura da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. A Bíblia ajuda a descobrir que a Palavra de Deus, antes de ser lida na Bíblia, já existia na vida. As comunidades descobrem que a sua caminhada é bíblica. “Na verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia” (Gn 28,16)!

7. A Bíblia entra na vida do povo não pela porta da imposição autoritária, mas sim pela porta da experiência pessoal e comunitária. Ela se faz presente não como um livro que impõe uma doutrina de cima para baixo, mas como uma Boa Nova que revela a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo. As pessoas que participam dos grupos bíblicos, elas mesmos se encarregam de divulgar esta Boa Notícia e atraem outras para participar. “Vinde ver um homem que me contou toda a minha vida!” (Jo 4,29).

8. Para que se produza esta ligação profunda entre Bíblia e vida, é importante: a) Ter nos olhos as perguntas reais que vêm da realidade, e não perguntas artificiais que nada têm a ver com a vida do povo. Aqui aparece como é importante o/a intérprete ter convivência e experiência pastoral inserida no meio do povo. b) Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem e hoje. Aqui aparece a importância do uso da ciência e do bom senso, tanto na análise crítica da realidade de hoje como no estudo do texto e do seu contexto social. c) Ter uma visão global da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras, e que esteja ligada com a situação concreta das suas vidas hoje.

9. A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade envolvente que compreende não só a contribuição intelectual do/a exegeta, mas também todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo de grupo, leitura pessoal e comunitária, teatro, celebrações, orações, recreios, “enfim, tudo que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou que de qualquer maneira merece louvor” (Fl 4,8). Aqui aparecem a riqueza da criatividade popular e a amplidão das intuições que vão nascendo.

10. Para uma boa interpretação, é muito importante o ambiente de fé e de fraternidade, através de cantos, orações e celebrações. Sem este contexto do Espírito, não se chega a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. Pois o sentido da Bíblia não é só uma idéia ou uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através de raciocínios; é também um sentir, um conforto que é sentido com o coração, “para que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15,4).

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Entrevista de Frei Carlos Mesters pela equipe Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos

Por Graziela Wolfart - 20/10/08.
Carlos Mesters :A Palavra está presente em todos os setores da vida da Igreja. “Judeus, Cristãos e Muçulmanos, somos irmãos, filhos do mesmo pai Abraão”, considera o frei Carlos Mesters. Ao falar sobre a importância dos círculos bíblicos, Frei Carlos Mesters afirma que neles “a Bíblia se torna um espelho, no qual as pessoas descobrem dimensões mais profundas da sua própria vida que antes não tinham percebido”.
Ao falar sobre a importância dos círculos bíblicos, Frei Carlos Mesters afirma que neles “a Bíblia se torna um espelho, no qual as pessoas descobrem dimensões mais profundas da sua própria vida que antes não tinham percebido”. Para ele, na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, a importância de um sínodo sobre a Bíblia no atual momento é muito grande por vários motivos, dentre os quais “o aprofundamento que a Palavra de Deus pode trazer para a vida humana” e a percepção da “importância da presença da sabedoria de Deus na leitura que os pobres do mundo inteiro fazem da Bíblia”.

Carlos Mesters é frade Carmelita, doutor em Teologia Bíblica. É natural da Holanda e ligado à caminhada das Comunidades Eclesiais de Base, ajudou a criar o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos). Escreveu, entre outros, Esperança de um povo que luta (São Paulo: Paulus, 1983), Círculos bíblicos (São Paulo: Paulus, 2001), Paulo apóstolo: um trabalhador que anuncia o evangelho (São Paulo: Paulus, 2002), Bíblia: livro feito em mutirão (São Paulo: Paulus, 2002), e Por trás das palavras (Petrópolis: Vozes, 2003). Mesters é assessor de um dos bispos brasileiros na XII Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que ocorre de 5 a 26 de outubro, no Vaticano. A entrevista a seguir foi elaborada em parceria com a equipe de Teologia Pública do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. (Já houve o Sínodo)

IHU On-Line - A leitura orante da Palavra de Deus tem tido muita difusão nas comunidades eclesiais, através dos círculos bíblicos. Qual é para o senhor a riqueza deste método e qual o seu limite?
Carlos Mesters - A riqueza deste método é que a leitura orante da Palavra de Deus provoca no povo um contato direto com a Bíblia, sem intermediários, num ambiente comunitário de fé, dentro da realidade do dia-a-dia da vida. Deste modo, vai nascendo um confronto entre Bíblia e Vida. A Bíblia se torna um espelho, no qual as pessoas descobrem dimensões mais profundas da sua própria vida que antes não tinham percebido. Você pergunta: “Qual o seu limite?”. Tudo o que é humano é limitado. Um limite aparece quando os participantes do Círculo Bíblico se fecham em si mesmos e esquecem a realidade da vida ao redor. Pois a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na Vida, na natureza, nos fatos, em tudo que acontece.

IHU On-Line - Qual é a importância de um Sínodo sobre a Bíblia no momento atual? Qual é a sua apreciação do "instrumentum laboris” para o sínodo?
Carlos Mesters - A importância de um sínodo sobre a Bíblia no atual momento é muito grande por vários motivos: 1) permite uma partilha entre os bispos, participantes do Sínodo, em torno das experiências e dos problemas no uso e na leitura que o povo faz da Bíblia nas várias partes do mundo, sobretudo nos países da América Latina, África e Ásia. Uma partilha assim enriquece a todos, ajuda relativizar os problemas e faz perceber melhor o caminho, o rumo do Espírito; 2) favorece o aprofundamento que a Palavra de Deus pode trazer para a vida humana e ajuda a descobrir melhor o alcance e o significado do documento “Dei Verbum ” do Vaticano II sobre a Revelação; 3) faz perceber a importância da presença da sabedoria de Deus na leitura que os pobres do mundo inteiro fazem da Bíblia. Isto ajudará para que a exegese científica descubra melhor qual a sua contribuição para a vida das Comunidades, para a Igreja; 4) o Sínodo sobre a “Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja” completa a caminhada iniciada no Sínodo anterior sobre a Eucaristia. Quanto ao Instrumentum Laboris, a opinião geral é de que se trata de um documento bom que está dando ao sínodo um rumo positivo. O Instrumentum Laboris é o resultado das contribuições do mundo inteiro. Mostra como a Palavra está presente em todos os setores da vida da Igreja.

IHU On-Line - Que leitura o senhor faz da presença de 25 mulheres e do rabino chefe de Haifa, Israel, Shear-Yashuv Cohen, neste sínodo?
Carlos Mesters - Acho muito importante a presença das mulheres, mas ainda é pouco. Só 25 entre mais de 200 participantes. O olhar feminino descobre e revela aspectos da Palavra de Deus que o olhar masculino não percebe, e vice-versa. Os dois olhares se completam e se enriquecem mutuamente. Limitando tudo ao olhar masculino, empobrecemos a riqueza que a Palavra de Deus poderia proporcionar às Igrejas e à humanidade. Quanto à presença do Rabino chefe de Haifa, Shear-Yashuv Cohen, ela é muito significativa e muito importante nos nossos dias. Ela nos ajuda a recuperar a memória. Não podemos esquecer nunca que Jesus era judeu, nasceu judeu, viveu como judeu e morreu como judeu. Todo o Novo Testamento é uma interpretação do Antigo Testamento à luz de Jesus. Temos muito a aprender uns dos outros. No passado, essa perda de memória a respeito da nossa origem nos levou a erros e crimes ao longo dos séculos. Recuperar a memória significa recuperar nossa identidade através do diálogo com nossos irmãos judeus. Em mim nasce o desejo de que, um dia, possa fazer o mesmo com nossos irmãos muçulmanos. Judeus, cristãos e muçulmanos, somos irmãos, filhos do mesmo pai Abraão.

IHU On-Line – Por que os livros apócrifos atraem tanto ao público? Não é tempo de fazer uma leitura de como foram selecionados os livros que hoje formam a Bíblia e revisar os que ficaram de fora?
Carlos Mesters - Acho que não há o que revisar. Os livros chamados apócrifos atraem porque são considerados proibidos. Tudo que é proibido atrai. Na realidade, nunca foram proibidos. Apócrifico quer dizer que estes livros não fazem parte da lista oficial. Deveriam ser chamados de livros “não-canônicos”. É bom notar que os livros apócrifos mais tardios, escritos entre o século V e VIII, têm uma tendência anti-semita, o que não é bom. É deplorável. Alguns chegam quase a considerar Pilatos como um homem honesto que foi enganado pelos judeus para condenar Jesus. Isto não corresponde à verdade histórica.

IHU On-Line - Que hermenêuticas o senhor apontaria como importantes, hoje, na leitura da Palavra, para não cair em fundamentalismos, literalismos ou leituras ideológicas?
Carlos Mesters - Todas as hermenêuticas que ajudam o povo a descobrir a presença da Palavra de Deus na vida são importantes: a hermenêutica feminina, a negra, a indígena, a leitura que os pobres fazem da Bíblia, enfim, tudo que faz a gente olhar os textos com um olhar a partir da realidade das pessoas. Resumindo, acho importante seguir os três passos do método ou da hermenêutica que Jesus usou com os discípulos na estrada de Emaús. O primeiro passo: aproximar-se das pessoas, escutar sua realidade e seus problemas; ser capaz de fazer perguntas que as ajudem a olhar a realidade da vida com um olhar mais crítico (Lc 24,13-24). O segundo passo: com a luz da Palavra de Deus iluminar a situação que os fazia sofrer e os levou a fugir de Jerusalém para Emaús; usar a Bíblia para fazer arder o coração (Lc 24,25-27). O terceiro passo: criar um ambiente orante de fé e de fraternidade, onde possa atuar o Espírito que abre os olhos, faz descobrir a presença de Jesus e transforma a cruz, sinal de morte, em sinal de vida e de esperança. Assim, aquilo que antes gerava desânimo e cegueira, torna-se luz e força na caminhada (Lc 24,28-32). O resultado do uso da Bíblia é o de criar coragem e voltar para Jerusalém, onde continuam ativas as forças de morte que mataram Jesus, e experimentar a presença viva de Jesus e do seu Espírito na experiência de Ressurreição (Lc 24,33-35). O objetivo último da Leitura Orante da Bíblia ou da Lectio Divina não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida. Não é conhecer o conteúdo do Livro Sagrado, mas, ajudado pela Palavra escrita, descobrir, assumir e celebrar a Palavra viva que Deus fala hoje na nossa vida, na vida do povo, na realidade do mundo em que vivemos (Sl 95,7); é crescer na fé e experimentar, cada vez mais, que “Ele está no meio de nós!”
www.ihuonline.unisinos.br

domingo, 2 de maio de 2010

Estudo do profeta Jonas para o Mês da Bíblia 2010

Desde o Vaticano II, a Bíblia ocupou um espaço privilegiado na família, nos grupos de reflexão, círculos bíblicos, na catequese e nas pequenas comunidades. A Igreja no Brasil desenvolveu toda uma prática de leitura e reflexão da Bíblia que muito contribui para o sustento da fé e da caminhada das pessoas. É uma forma muito rica de viver a missão da Igreja que é a de servir a Palavra.
O Mês da Bíblia surgiu há 39 anos por ocasião do 50º aniversário da Arquidiocese de Belo Horizonte. Desde então tem destacado a importância da leitura, do estudo e da contemplação das Sagradas Escrituras. Na verdade, o Mês da Bíblia contribuiu muito para o desenvolvimento da Pastoral Bíblica no âmbito paroquial e diocesano. Hoje, se percebe a necessidade da Animação Bíblica das Pastorais em vez da existência de apenas uma pastoral entre as demais dedicada às Sagradas Escrituras. A Animação Bíblica vem a ser a forma mais adequada de acentuar a centralidade da Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja.
A Comissão Episcopal Pastoral para a Animação Bíblico-Catequética, juntamente com as Instituições Bíblicas, no desejo de dar continuidade à XII Assembléia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos (2008), que destacou especialmente o mandato missionário de todo cristão como consequência do batismo, propõe para o ano de 2010, no mês da Bíblia, o estudo e a meditação do Livro de Jonas com destaque para a evangelização e a missão na cidade.
O Sínodo pediu que a consciência desse mandato missionário e discipular fosse aprofundada em cada paróquia e comunidade, nas pastorais, nos movimentos e nas organizações católicas. Também foi desejo dos Padres Sinodais que se propusessem novas iniciativas para se fazer chegar a “Palavra de Deus a todos, especialmente, aos irmãos batizados, mas não suficientemente evangelizados” (Proposição 38).
Além disso, a V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, em Aparecida - SP (2007), também destacou o valor do mandato missionário, enfatizando os novos areópagos da missão (DAp 491-500). Areópago, literalmente, significa colina de Ares, localizada na antiga cidade grega de Atenas. Nesse lugar, a céu aberto, a cidadania era exercida em assembleias que tratavam de importantes assuntos no âmbito da política e da religião. Foi ali, conforme At 17, 16-33, que São Paulo apresentou o Evangelho, pela primeira vez, a um ambiente de cultura grega. Atualmente, o areópago, em sentido simbólico, significa os novos contextos de missão. Os encontros sobre o livro de Jonas ajudarão a Igreja a vivenciar o mandato missionário no enfrentamento de novos desafios.
Na linha do ecumenismo da Campanha da Fraternidade deste ano, o livro de Jonas reforça a idéia da universalidade do amor de Deus, que reconhece o valor de todos; no horizonte aberto pelo Ano Paulino, esse texto da Escritura nos faz refletir sobre a evangelização do mundo urbano. Assim, Jonas será uma grande contribuição para que o entusiasmo não esfrie e a Igreja possa continuar ampliando sua reflexão sobre a amplitude de sua missão. De fato, a escolha deste livro bíblico para o mês de setembro tem por objetivo tirar os católicos do comodismo e do julgamento preconceituoso e os encaminhar para a evangelização da cidade.
Existem muitas formas de se aproximar da Sagrada Escritura, porém, existe uma privilegiada à qual todos somos convidados: o exercício da Leitura Orante (Lectio Divina) da Sagrada Escritura que, se bem praticada, nos conduz ao encontro com Jesus (Cf. DAp 249).
Por isso, escolhemos esta forma de contato com a Palavra de Deus para este mês da Bíblia. Agradeço à Aíla Luzia Pinheiro de Andrade, da Comunidade Nova Jerusalém, pela elaboração deste subsídio.
Que o estudo e a meditação do livro de Jonas nos ajudem a vencer a tentação de fugir dos desafios da missão e nos tornem capazes de acolher a todas as pessoas sem acepção.

Dom Eugênio Rixen Bispo de Goiás - GO
Presidente da Comissão Episcopal Pastoral
para a Animação Bíblico-Catequética
Fonte: CNBB