Maria na cultura latino-americana e caribenha
Significado e fé cristã
Lina Boff
Professora da PUC-Rio
Pós-doutorada pela Gregoriana de Roma
Introduzindo o assunto:
Antes de tudo queremos esclarecer dois conceitos básicos da nossa contribuição a este evento de estudo e reflexão: quando se fala da Comunidade divina fala-se da Trindade não como doutrina, mas como realidade, isto é, a Comunidade das Três Pessoas divinas está sempre presentes nos processos históricos e portanto ela é um fato; não depende das definições dogmáticas de várias tendências que se estabeleceram durante séculos; o Pai o Filho e Espírito Santo estiveram sempre presentes na história da humanidade, comunicando seu amor, inserindo o devir humano dentro da comunhão divina das três Pessoas. O segundo conceito que deve estar claro no nosso modo de pensar e de articular com a vida prática esta reflexão, é o de considerar a Maria histórica do NT, como a mesma Maria simbólica do universo cultural religioso do marianismo popular que povoa a cabeça dos povos do extenso Continente do Sul do Mundo.
1)- Quem é a Maria histórica
É a Maria de Gálatas 4,4 nascido de mulher, que é a Maria da narrativa dos quatro Evangelhos. É a mulher que age e re-age diante dos fatos históricos da nossa salvação. O primeiro deles é o da Encarnação libertadora. Este fato é o começo da nossa história salvífica com a presença humana de Jesus como ser histórico e como Pessoa da Comunidade trinitária, embora vivendo sua divindade ainda não revelada. Maria re-age a este fato pedindo explicação de como podia ser mãe sem ter tido relações conjugais com homem algum (cf. Lc 1,34); e age à explicação da teofania com quem estava falando, ao pronunciar seu SIM depois da explicação recebida e logo que vislumbrou o mistério de fé da revelação do Deus em quem acreditava e confiava plenamente como pessoa humana, age da mesma forma que cada um@ de nós poderia agir. Com a fé e o FIAT desta mulher do povo de Nazaré, tivemos a graciosa libertação de acabar com a distância que nos separava do Deus Pai e Espírito Santo, através de Jesus, o Filho.
O segundo fato histórico da nossa salvação é o do avanço na fé (cf. LG 58) que Maria realizou na sua vida terrena, sobretudo durante a vida pública de Jesus em que Ele pregava o Reino, na preparação da descida do Espírito Santo em Pentecostes que se plenifica na sua gloriosa assunção ao céu em corpo e alma (cf. LG 69). Nesta caminhada da fé terrena Maria re-age aos fatos salvíficos, auscultando a pregação do filho e guardando em seu coração, tudo aquilo que não compreendia; e age tomando as iniciativas que lhe eram inspiradas pelo Espírito que a continha e era contida por Ele.
Citamos algumas de tais iniciativas da Maria histórica, a Maria dos Evangelhos: visita Isabel e proclama o Cântico revolucionário do Magníficat tornando pública sua opção preferencial pelas massas pobres e excluídas (cf. Lc 1,53); chama a atenção do filho que se deixa ficar no templo discutindo com os teólogos da época sem dar nenhuma satisfação aos pais (cf. 2,48) ; percebendo a falta de vinho no casamento de Caná, comunica ao filho o fato e entra em contato relacional com os ajudantes da festa de Caná para saber como podia ajudá-los (cf. Jo 2,3.5); testemunha sua fidelidade ao Projeto salvífico da Comunidade trinitária ao pé da cruz de Jesus junto com suas companheiras de seguimento e o único homem que era João (cf. Jo 19, 25-27). Lá estava Maria de pé e não caída e chorosa; com sua presença age no retiro de preparação à vinda do Espírito Santo em Pentecostes (cf. At 1,14); e com sua adesão totalíssima à vontade da Comunidade divina, merece entrar na visão beatífica em corpo e alma, como sinal de esperança segura para o fim da nossa caminha terrena (cf. LG 68).
2)- As ‘Marias’ históricas de hoje
São aquelas que lutam do lado do povo e não se conformam com a situação que estamos vivendo. Nesse sentido elas se inspiram seja na Maria dos Evangelhos que na Maria do ícone de Atos. A mulher de hoje, arrastada pela atitude de Maria e inspirada na sua fé e coragem de aderir plenamente ao chamado do Pai e seu Projeto, acredita num modo novo de viver seu batismo, de testemunhar sua fé e de organizar a comunidade eclesial. A presença de Maria e as outras mulheres no evento Pentecostes criou e continua criando a nova comunidade do Espírito doado pelo Ressuscitado. Ora, nesta comunidade a mulher se identifica com a graça de ser chamada à condição original de reproduzir em sua vida e em seu corpo o gesto eucarístico da Comunidade divina pela Pessoa de Jesus Cristo. Alimentar seu povo com sua própria carne e sangue, foi a modalidade mais radical e intensa que a Comunidade divina encontrou para exprimir sua doação plena e deixar presente seu infinito amor no meio do povo que ama até à morte e ressurreição.
As ‘Marias’ de hoje realizam este gesto seja no ato da amamentação, no ato do martírio moral, psicológico, espiritual, como no martírio que exige versar seu sangue e água salvadores como se deu em Jesus Cristo. Parece-nos que aí está um veio promissor para a reflexão sobre o mistério abissal da Trindade como realidade histórica e como mistério de fé que ultrapassa a própria história. O mistério da presença real de Jesus Cristo no meio de seu povo que louva o Deus Trino da Nova Criação, proclama a revelação da Comunidade de Amor no seu modo de ser feminina e no seu modo de ser masculina, ao entrar em relação apaixonada e amorosa de coração-a-coração com seu povo.
3)- Significado para a nossa cultura: a Maria simbólica
Somos uma república mestiça e étnica culturalmente. Não somos europeus nem latino-americanos. A síntese de tantas antíteses é o produto singular e original que é o Brasil atual. Somos tupinizados, africanizados, orientalizados e ocidentalizados. Não fomos descobertos em 1500, mas continuamos encobertos e vivendo de um caldo de culturas distintas e ricas. Mas a nossa identidade está por ser construída ainda, sobretudo política e sócio-cultural. O Papa diz que temos uma identidade religiosa e cristã, mas nós precisamos caminhar e nos conscientizar muito ainda, muito mais do que tudo aquilo que o Papa disse a nosso respeito e a nosso favor.
Este é o quadro de fundo que nos leva a falar do marianismo popular que nasce da Maria histórica sim, mas que no universo cultural dos nossos povos ela passa a ser a Maria simbólica na cabeça e na prática de todos. As grandes divindades femininas ainda parecem povoar o universo simbólico e religioso do povo que vive numa cultura tão diversificada. A percepção da figura de Maria como símbolo e também como epifania simbólica, situa o povo para além de si mesmo e o leva não raras vezes, a viver e a desejar um mundo diferente do que vive. Esta simbólica é um dos fatores mais poderosos na inserção da fé popular da realidade definitiva em que acredita.
A nosso juízo, esta experiência devocional simbólica acrescenta à fé mariana popular, uma dimensão de relação com Maria extra-racional e imaginativa ou até mesmo fantasiosa, mas prenhe de fé e de esperança. Esta relação se dá entre a pessoa, a comunidade e o mundo cósmico. Diante de tal fato, a reflexão nos leva a criar uma nova antropologia continental, a qual se inscreva dentro de um reconhecimento capaz de criar no povo a consciência de que é ele que deve construir a sua história, criar sua cultura e construir sua identidade cristã e religiosa. A espécie humana tratada como não-pessoa, dá lugar à virada antropológica humana, inclusiva e libertadora pois, não há mais lugar para a submissão e o domínio. Faltando esta intuição de cada ser humano na interpretação dos elementos simbólicos vistos à luz da fé, nada é percebido em Maria como epifania simbólica.
4)- A mulher de hoje e sua nova consciência
Diante da proposta de uma antropologia humana, inclusiva e libertadora exige-se uma nova consciência antropológica. Na descoberta de muitos arquétipos ligados ao Feminino, a mulher de hoje costura os pedaços de vida sacrificada da humanidade inteira para resgatar o retorno da Grande Mãe e da Grande ‘deusa’, que traz consigo a misericórdia do nosso Deus, a ternura de suas entranhas divinas e a leveza de seu sopro perfumado do Espírito. A reflexão teológica feita na ótica da mulher cristã e católica em diálogo, nada reivindica quando sente o chamado que o Senhor lhe faz. O Senhor incluíu todas as mulheres na história da salvação, assim como o fez com Tamar (Gn 38, 14-18), com Raab (Js2,1), com a mulher de Urias (2Sm 11, 1-5), com Rute (3, 7-15), e de um modo consentâneo à própria missão, o faz com Maria de Nazaré ( Mt 1,16), independente da linhagem de cada uma. Não afirmamos, mas argumentamos: temos consciência de que o elemento feminino está sobre o altar.
Dois fatos mostram o avanço do significado de Maria na nossa cultura. São eles: a figura da Maria histórica em muitos e variados ambientes populares; estes se encontram já a caminho de uma conscientização e abertos a uma reflexão mariológica que se expressa numa prática pastoral, articulada no dia-a-dia de cada comunidade de fé. Este processo tende sempre mais colocar Maria como mulher companheira de caminhada rumo ao Pai, mulher do povo que constrói o Reino com ele e mulher lutadora pela mudança de condições de morte em condições de vida digna e agradável a Deus.
O segundo fato é referente ao avanço de toda a simbólica mariológica alimentada pela grande maioria do nosso povo simples e empobrecido, simbólica que se manifesta no culto de caráter devocional; este passa gradativamente a se manifestar no universo religioso de cada comunidade através de cantos, celebrações, orações e até mesmo nas alegorias representativas do carnaval brasileiro. Tudo isso é elemento formador de uma consciência crítica que o povo tem da Virgem que peregrina com ele na opressão, mas um povo cheio de fé e grávido de esperança por dias melhores.
Se há muito que criticar da figura simbólica de Maria no universo cultural e religioso dos nossos povos, pode-se afirmar também de que esta Maria tem muito a ver com o seguimento de Jesus Cristo. Os nossos povos encontram em Maria a figura feminina que os precede no caminho de Jesus Cristo e n’Ela encontram o sentido da própria luta em favor da vida com abundância. A comum-união da Maria histórica como Maria simbólica ou da Maria simbólica como Maria histórica, torna-se evento de fé autêntica quando o povo vive a experiência do Pai como o Deus sumamente benigno e sábio, o Filho como o Enviado do Pai e o Espírito Santo como o plasmador da pessoa humana. (cf. LG, 52.56). Excluir Maria desse processo ou ofuscar sua participação ativa que se faz mistério para a nossa limitada compreensão, é ignorar a interrelação ‘ad intra’ e ‘ad extra’ que é a vida da Comunidade divina.
Para concluir:
Entendemos que o significado de Maria na nossa cultura, à luz das Pessoas divinas em relação, é visto a ‘olho nu’, em três fatos que já têm sua história e sua caminhada distinta em todos os Continentes povoados da nossa Mãe-Terra. São eles:
1)- O nosso povo tem seu modo de cultuar a Maria que não exclui nenhuma das Pessoas da Comunidade divina. É a reflexão teológica que não consegue elaborar o desafio pastoral levantado pelo jeito que o povo tem de encontrar em Maria um canal de sua fé cristã e católica.
2)- A presença maciça das mulheres em quase todas as instâncias da vida humana com seus segmentos políticos, sociais, culturais e religiosos.
3)- A mudança de paradigma que mostra a queda do patriarcado na qual o homem começa sentir a necessidade de fazer acordo com a mulher, percebe que não é pelo domínio e nem pela determinação só dele que pode caminhar para frente. Mas homem e mulher Deus os criou (cf. Gn 1,27).
Nenhum comentário:
Postar um comentário