INICIAÇÃO CRISTÃ
* Padre Vanildo de Paiva
1. A URGÊNCIA DE UM PROJETO SÓLIDO DE INICIAÇÃO CRISTÃ
Vivemos em um tempo de mudanças velozes que traz a todos a sensação de relatividade da vida, de caducidade de todo conhecimento dito definitivo, de instabilidades quanto a valores e princípios existenciais e éticos, de incertezas quando ao futuro da humanidade e do planeta. A globalização em todas as suas dimensões, o avanço desenfreado da técnica e do mundo virtual, as pesquisas e descobertas científicas, o descontentamento em relação aos sistemas de governo e econômicos, as grandes convulsões sociais, se, por um lado, trazem um forte apelo ao ser humano para que assuma e se assenhoreie de sua história, acredite no seu potencial e conquiste um mundo melhor, por outro lado coloca este mesmo ser humano num chão de inseguranças e confusão. O medo, a decepção com as lideranças, a desconfiança em relação a tudo o que se apresente como definitivo e absoluto, a fragmentação da realidade em detrimento da visão de um todo unificado, são algumas das atuais características que marcam o homem “líquido”, que vive numa época “líquida”(Z. Bauman), carente de sentido e em busca de realização.
Neste contexto complexo e plural situam-se os adultos e crianças, “ovelhas sem pastor”(cf. Mc 6,34) aos quais o Senhor continua enviando os seus discípulos missionários: “Ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel”( cf. Mc 10,5-6). São eles, principalmente os adultos, os destinatários e também sujeitos da evangelização hoje. São eles que, junto aos inúmeros questionamentos por conta do momento histórico que vivemos, querem também respostas a questões profundas relativas à sua sede de sentido e realização para a vida. São eles que buscam, muitas vezes até sem saber que o fazem, um encontro com o Único capaz de lhes preencher o coração, como um dia Ele fez à Samaritana, ao dizer: “Sou eu, que estou falando com você!” (Jo 4,26).
Grande parte dessas pessoas não foi, de fato, evangelizada, ainda que já tenha ouvido falar de Jesus. A maioria recebeu um “verniz” de Evangelho, que não lhe chegou ao cerne, por conta de uma catequese intelectualizada e moralista, com pouca ou nenhuma repercussão na vida cotidiana. Na visão de muitos, a Igreja tornou-se um grande pronto socorro, ao qual se recorre na hora de uma aflição ou necessidade, tendo o padre como agente credenciado para lhes oferecer remédio e cura imediata, através de um sacramento visto de maneira mágica, de uma bênção ou de uma graça a ser negociada com seu santo predileto. Sem contar aqueles que se desencantaram com a Instituição ou, por vários motivos, se afastaram (ou foram afastados!) dela...Um grande leque se abre, apontando para tantas direções de adultos que, ainda que não peçam, precisam de uma resposta eficaz e séria da Igreja, que supere em muito a maquiagem dos “cursinhos intensivos” para Sacramentos.
2. O MODELO CATECUMENAL
Nesses quase dois mil anos de missão, a Igreja foi tentando se adaptar as exigências de cada época, ora com mais eficácia, ora com parcos resultados. O catecumenato, processo catequético de iniciação dos primeiros séculos, foi uma maneira muito criativa encontrada para responder às urgências da época, tornando-se “verdadeira escola de fé” (cf. DGC 130). Hoje ele é proposto pela Igreja como modelo, visto apresentar elementos muito importantes, que, adaptados à nossa realidade, podem contribuir eficazmente na elaboração de itinerários próprios para cada contexto, para repensarmos o processo evangelizador e catequético atual. É importante ressaltar que a ideia de “modelo” apresentado pelos Diretórios Geral e Nacional de Catequese, bem como por outros documentos, não significa que se deva impor a mesma metodologia dos primeiros séculos, mas que o catecumenato antigo sirva antes de inspiração, leve-nos a uma mística, a um estilo iniciático de encontro e introdução da pessoa no mistério de Cristo, para que alcance a maturidade da fé e possa dizer, como concluiu o apóstolo Paulo: “Já não sou eu mais que vivo; é Cristo que vive em mim!” (Gl 2,19).
3. A INSPIRAÇÃO CATECUMENAL
Mas, que elementos são esses? O que podemos aprender com as primeiras comunidades e experiências cristãs? Em que o catecumenato primitivo pode nos inspirar? Estas perguntas não têm respostas acabadas. A reflexão atual da Igreja, também no Brasil, tem apontado pistas bastante interessantes para iluminarmos nossa catequese, especialmente com adultos, aos quais todos os esforços devem ser envidados, visto serem eles os destinatários prioritários da ação evangelizadora da Igreja. Podemos citar alguns desses elementos:
a) Passagem de uma catequese sacramentalizadora para uma catequese evangelizadora
Enquanto insistirmos numa catequese com finalidade somente sacramental, “para” a primeira Eucaristia ou Crisma, não daremos conta de uma realidade muito mais ampla que nos desafia e questiona: uma multidão de pessoas que busca e necessita de um encontro com a Boa Notícia da Vida e do amor, de uma experiência com o Cristo que possa suportar uma vida inteira, numa fé madura e comprometida com o Reino. Se o foco for apenas sacramental, a maior parte das pessoas continuará à margem da vida eclesial, por não se enquadrarem em nossos critérios e “pacotes” canônicos e pastorais! Isso não significa que os Sacramentos não tenham o seu lugar, mas este não será o de meta ou ponto de chegada!
b) Cristo como centro e referência da catequese
Apresentar a pessoa de Jesus, sem maquiagem e fundamentalismos, como sentido máximo para a vida, muito além da Instituição, é fundamental! Proporcionar o encontro com Ele e a experiência do seu amor...Isso exige uma catequese mais “enxuta”, voltada para o essencial, despojada de tantos conteúdos e temas que podem ser compreendidos ao longo de toda a vida cristã.
c) O papel fundamental da comunidade cristã
A comunidade está ausente dos nossos atuais itinerários catequéticos. Não podemos nos esquecer de que ela é fonte, conteúdo, agente e ponto de chegada do cristão iniciado e maturo no testemunho cristão. É ela que acolhe, motiva, ajuda e testemunha a fé no cotidiano dos catequizandos em processo de educação da fé.
d) A interação Catequese-Liturgia
No início do cristianismo não havia compêndios e livros catequéticos. Rezava-se o que se acreditava. Acreditava-se no que se rezava. A liturgia era e precisa continuar sendo formadora e educativa do cristão, ainda que sua natureza seja celebrativa e não discursiva. O jeito de celebrar, os elementos simbólicos e rituais, a Palavra e boas homilias formam eficazmente o cristão.
e) O acompanhamento personalizado
Ainda que demande um número maior de pessoas disponíveis para a tarefa catequética, vale a pena investir num acompanhamento personalizado dos catequizandos, visto que cada um tem um ritmo, uma experiência de vida e uma cosmovisão diferente do outro. Atente-se, entretanto, para não particularizar radicalmente a caminhada, perdendo-se, assim, o vínculo essencial com a comunidade.
f) O envolvimento da família do catequizando
É na família que o catequizando convive boa parte de seu tempo e é lá que preferencialmente se dará o testemunho cristão. Descobrir meios para envolver e atingir a família daqueles que são acompanhados no processo catequético é de grande importância.
g) Catequese a partir da vida e para a vida do catequizando
O ponto de partida da catequese não é o livro, nem as definições teológicas, mas sim a vida do catequizando. O acompanhamento personalizado e o bom senso do catequista permitem uma consideração do catequizando a partir de seu contexto, de sua realidade social, econômica, política, cultural, religiosa, existencial...Se a catequese não incidir na vida, não transformá-la, se envidarão esforços por quase nada!
h) Processo gradual e permanente
O processo catequético precisa respeitar o desenvolvimento natural da pessoa, em seus aspectos essenciais. Absorver certos conteúdos fortes e relevantes demanda tempo, paciência, construção diária, foco no essencial. Por isso fala-se de catequese permanente, desde o útero materno até a hora da morte!
i) O lugar essencial da Palavra de Deus
A Palavra de Deus, escrita na Bíblia e na vida, precisa ocupar um lugar de destaque na catequese, pois a sua meditação ajuda o catequizando a perceber a história de salvação que continua hora e a presença constante do Deus na vida na sua história pessoal, com força de libertação.
j) A unidade teológica dos Sacramentos de Iniciação Cristã
Se cronologicamente dificilmente se conseguirá uma unidade dos Sacramentos de Iniciação, importa que o catequizando perceba a unidade teológica que há entre eles, não fragmentando as vivências sacramentais ou isolando um do outro, sob pena de vincular-se efetivamente a nenhum deles e empobrecer a vida cristã.
k) Compromisso Sócio-transformador
O princípio de interação Fé-Vida, fundamental característica da Catequese Renovada, na mais fiel tradição da Igreja latinoamericana, é princípio que deve iluminar todo itinerário de iniciação cristã, garantindo que a opção preferencial de Jesus Cristo pelos pobres e marginalizados seja sempre atualizada e assumida no testemunho do cristão amadurecido e implicado com sua fé. É na vivência do compromisso sócio-transformador da sua realidade que o iniciando ( e iniciado!) vai dando sinais de adesão a Jesus Cristo e ao seu projeto de justiça, vida e fraternidade, especialmente em nosso continente marcado pela exclusão social e desrespeito à vida de tantos irmãos empobrecidos, muitos na linha de miséria. Ênfase seja dada à defesa da qualidade de vida no planeta e a ações transformadoras que garantam ao ser humano a dignidade e à vida em plenitude.
l) Educação para o Ecumenismo e para o Diálogo Religioso
Em um mundo globalizado e plural, no qual a diversidade é cada vez mais entendida como valor e riqueza, é de grande importância que o cristão maduro na fé assuma atitudes de respeito e valorização das diferenças individuais e de grupos, especialmente religiosos. O processo de iniciação deve colaborar na educação do cristão para que este saiba acolher o seu próximo sem preconceitos, abrir-se ao diálogo religioso e a perceber as sementes do Reino de Deus espalhados em todos os povos e culturas. Consciente de sua fé católica, mas sem fundamentalismos ou proselitismos, a pessoa que trilha o caminho da iniciação cristã é o homem/mulher da paz, do entendimento e, sobretudo, do amor que a todos aproxima, muito além das divisões sociológicas ou culturais da religião ou de qualquer outro partidarismo.
Pe. Vanildo de Paiva
catequeseebiblia.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário