Mãe Aparecida do Povo do Brasil
Amor – culto – cultura
Irmã Lina Boff
Professora da PUC-Rio, de Petrópolis e convidada pelo Antonianum de Roma
Prólogo: filha predileta do PaiEsta frase evoca uma verdade fundamental da nossa fé cristã e católica, que é a filiação divina, nem sempre colocada na evidência teológica e mariana em que ela merece estar colocada. Se Maria é a filha predileta do Pai, como bem afirma o oitavo capítulo da Lumen gentium, perguntamos já de saída:
- Em que sentido Maria - a mulher do Antigo Testamento que abre o NT - vive esta filiação divina que a faz merecedora do título: filha predileta do Pai?
- De que modo se torna ela inspiração para a vivência da nossa filiação divina, no século XXI, da era digital e da globalização extremada?
- Qual sua influência nas expressões de amor ao Deus Uno e Trino da nossa fé, manifestadas no amor, no culto e na própria cultura?
Introduzindo o assuntoMaria é filha predileta. Em primeiro lugar é filha porque recebe de Deus o dom do seu amor que se manifesta na comunhão vital, pessoal e íntima que ela alimenta e vive com seu Deus. Esta intimidade que Maria vive ao longo de sua vida terrenal e ao mesmo tempo alimenta com seu SIM continuado, não é só física, mas uma comunhão de relação amorosa que ela recebe e acolhe de seu Deus e a esta relação se abre, inteiramente, a ponto se tornar uma comunhão histórico-salvífica, mediante a qual Deus a torna participante da história da salvação de todo o seu povo, e por graça da infinita liberalidade do Pai, a toda a humanidade. Esta concepção é a concepção bíblica predileta do Antigo Testamento que condensa a experiência histórico-salvífica do povo escolhido, na Pessoa do Messias que realiza o Projeto do Pai na história e o plenifica com sua morte e ressurreição.
Por isso, na base da tradição vétero-testamentária, há a eleição de Israel, pela qual o povo vive uma relação de filiação como um dom especial de Deus, porque o destino desta relação é escatológico, ou melhor, eterno. No Novo Testamento, a concepção de filiação divina que Jesus mesmo pouco utiliza em sua pregação do Reino, passa a ser palavra típica do cristianismo primitivo, que encontra sua raiz no batismo de Jesus: Tu és meu filho querido, eu, hoje, te gerei (Lc 3,22); na oração de agradecimento ao Pai pela missão dos setenta e dois discípulos, na qual repete a invocação Pai, por cinco vezes: Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece quem é o Filho se não o Pai, e quem é o Pai se não o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar (Lc 10, 21-22). A palavra Filho nesta breve perícope, é empregada por três vezes e em relação ao Pai, com quem o Filho entra na intimidade que plenifica a vida temporal e aponta para para a transcendência dos fatos históricos do povo de Israel. Pois, as coisas que o Pai ocultta às pessoas sábias e entendidas, não são facta bruta, mas vêm carregados de sentido e de graça salvadora.
A Carta aos Hebreus afirma, estar acima a dos anjos a ação de Jesus na história, porque veio ocupar-se, como Filho dileto, Filho querido da descendência de Abraão, por isso o autor sagrado repete: Tu és o meu Filho dileto, eu hoje te gerei! (Hb 1,5).
Jesus se sente Filho, e assim se relaciona com o Pai. É esta consciência que o consola quando se sente abandonado e rejeitado pela humanidade insana. A consciência que Jesus tem desta realidade e que nos dá a conhecer, de que só o Filho conhece, verdadeiramente, o Pai e de que só o Pai, conhece, verdadeiramente, o Filho, nos leva a uma afirmação que tem fundamento na eleição do povo de Israel. Jesus pertence ao povo de Israel, o povo eleito, e Ele é o escolhido dentre o povo eleito para dar a conhecer o mistério do Pai que ficou escondido há séculos e só agora, na pessoa do Filho dileto, é conhecido e anunciado a todas as nações (cf. Rm 16, 25ss). A eleição, a dileção que o Pai tem para com Jesus, é o fato de que Ele, como Filho, se abre de tal forma ao Plano do Pai, que este pode contar com Ele para a realização de seu Plano de Salvação.
Jesus, portanto, é o Filho dileto do Pai, é o preferido na estima e na afeição, é querido e especialmente, amado. Na prosa do padre escritor, Manuel Bernardes, presbítero da Congregação do Oratório de São Felipe Néri, em sua obra, Exercícios Espirituais, do século XVIII, utiliza o superlativo da palavra dileto para falar da íntima dileção de Deus Pai para com seu Filho:
Já que meu Deus foi tão misericordioso para com os homens, que os quis ensinar pela própria pessoa de seu diletíssimo Filho, ... eu quero, mediante a sua graça, aprender por este exemplar .
Pode-se evidenciar a intensidade da linguagem e a profunda mística que envolve este escritor clássico da prosa portuguesa. Enquanto que a palavra predileção, que também deriva da língua latina e que quer dizer quase a mesma coisa, pode ser explicada, em sua etimologia, da seguinte forma: estar diante da pessoa que se ama. A partícula pre, no latim, denota estar diante de, e dileta, dileção, significa a pessoa preferida na estima, na afeição, querida, especialmente, amada, palavra só dada a Jesus. Por derivação do amor que o Pai devota ao Filho, Maria é a filha pré-dileta do Pai, e é mãe do Filho diletíssimo do Pai, que é Jesus.
A perspectiva do Antigo TestamentoA linhagem bíblica de Maria de Nazaré, denominada pelos padres do Concílio Ecumênico Vaticano II, filha predileta do Pai (LG 53), por estar unida ao Pai, encontra-se ao mesmo tempo caminhando com a humanidade, filha de Adão e Eva, participando da mesma sorte e do mesmo destino. Este vínculo não se dissolve porque está intimamente, conectado com a missão desta mãe – a de marcar a História da Salvação com seu SIM incondicional e livre.
Nesse sentido, Maria está presente e vem da linhagem das Mulheres do Êxodo, que tementes a Deus, pouparam a vida de tantos meninos hebreus, desde o nascimento entre as duas pedras, com a finalidade de manter a presença numerosa dos hebreus em meio a um povo estranho (cf. Êx 1, 15-22). Vem da linhagem da filha do Faraó que arriscou sua nobreza terrena para salvar o Menino tirado das águas, prenúncio de libertação do povo escolhido por Javé (cf. Ex 2, 5-10).
Estas mulheres mostram que não querem a vida só para elas, mas têm consciência de que foram criadas para viverem como filhas e filhos do Criador, que é Pai de todos: poupam a vida dos meninos hebreus, porque a vida é um direito que pertence ao Deus Criador que tirou tudo do nada e não aos homens e nem às mulheres. Deus escolhe pessoas que cuidam da vida. E estas pessoas são mulheres de todas as classes sociais. Nesse contexto, encontramos as parteiras Sefra e Fuá e a filha do Faraó, que segundo a historiografia da exegese contemporânea, aparecem com nomes incertos, mas são apresentadas como mulheres que defenderam a vida arriscando a própria vida e a condição em que eram colocadas.
A filha predileta do Pai, é da estirpe das numerosas filhas de Jerusalém, como narra o mais belo Canto que celebra o amor de um Amante e de uma Amada-amante, que se aproximam e se distanciam, se procuram e se perdem, se buscam e se encontram, mas, se unem no amplexo do amor do meio-dia que não tem sombras, numa interpretação alegórica do amor humano que transcende a terra para chegar ao céu (Gregório de Nissa comentando o Cântico dos Cânticos em Ct 1,5+8,4).
A filha predileta do Pai, vem da árvore genealógica da tradição israelítica, em que a figura feminina protagoniza o momento de esplendor e de projeção que aponta para o sentido universal e coletivo da presença de Javé em meio a seu povo. As filhas de Israel são carregadas sobre as ancas para celebrar o retorno do exílio e o esplendor da cidade santa e sagrada pelo povo; é filha que recebe a luz de Javé, trazendo as riquezas da terra e as riquezas da glória e esplendor do Deus que edifica, enaltece e realiza as coisas que promete (cf. Is 60,4).
A filha predileta do Pai, é a filha de Sião, membro do povo de Israel a quem é dirigida a profecia com estas palavras: Farei de ti eterno motivo de orgulho, motivo de alegria, de geração em geração (cf. Is 60,14). O profeta acrescenta ainda: Serás chamada Procurada! Cidade habitada! (Is 62,12).
A filha predileta do Pai vem de uma aproximação das várias expressões bíblicas do Êxodo e dos Profetas. Com a expressão “filha predileta do Pai”, pode-se deduzir que esta se encontra na figura de Maria, a profetisa, irmã de Moisés, que pega no tamborim e todas as mulheres a seguem com seus tamborins também, para cantar e dançar a libertação de seu povo. Elas estão nas expressões que o autor sagrado tanto repete nesta narrativa: Os filhos de Israel, Israel (cf. Êx 14-15), expressões que têm como desfecho a Maria do tamborin, que toma a iniciativa de proclamar a Javé, vestido de glória pelos seus feitos (cf. Êx 15,21). Nesta narrativa ela não é chamada de filha, mas pertence ao povo de Israel que se organiza com suas filhas e filhos, para dar o golpe no Faraó e marchar em direção à Promessa feita a Abraão, a Isaac e a Jacó. Esta é a filha predileta do Pai que participa, com seu povo e seus chefes, incluindo e dando igualdade de dignidade filial a todos e a todas.
A filha predileta do Pai, vem da linhagem profética do espírito de Javé. Aqui, ela não pode deixar de estar na efusão do espírito profético sobre todo o povo de Deus, preanunciado pelo profeta Joel e proclamado por Pedro, em seu primeiro discurso aos povos de tantas proveniências, no dia de Pentecostes (Cf. Jl 3, 1-5 e At 2, 16ss). Joel fala desta nova criação, afirmando que Javé derramará seu espírito sobre vossos filhos, e, dirigindo-se às filhas de Israel, o profeta é claro: ... e vossas filhas profetizarão. Esse espírito da profecia será derramado, igualmente, sobre as escravas (Jl 3, 1-2). Não é esta a filha predileta do Pai que tem a coragem de inaugurar novos tempos de inclusão e igualdade para todos e para todas? É no espírito de Deus que tem origem a filha predileta do Pai. Por isso, ela é uma personalidade coletiva que ultrapassa a própria figura e a própria corporalidade com que foi plasmada pelo Pai, Criador de tudo e de todas as coisas.
A filha predileta do Pai, é uma personalidade simbólica, portanto, porque coletiva. Não é uma pessoa privada, mas sua representavidade cobre todo o povo de Israel e se torna uma protagonista ao participar na realização de sua libertação dos opressores. Ela está na arte, na música, na pintura e na ópera que perpassa os tempos e as modas. A ópera de George Frederic Handel (1742), intitulada MESSIAH – O Messias – por exemplo, é apresentada com vigor e majestade, na sua forma narrativa, adaptando as cenas destes textos bíblicos para fazer um espetáculo que perpassa os séculos e continua, todavia, até em nossos dias, enchendo-nos de contemplação e mística, Handel com seu veio musical e seu pendor religioso e genial, nos anuncia que o Reino está no meio de nós, através da sua narrativa que perfila os traços característicos do Filho diletíssimo do Pai, figurado em Isaías; e os traços da filha predileta do Pai, que participa do amor que o Pai dá ao Filho e que caminha conosco pelos caminhos da vida dos nossos povos.
Finalmente, a filha predileta do Pai, é celebrada de forma lírica nos momentos da liturgia israelítica, em que povo refresca a memória de sua caminhada histórica feita de eventos e de fatos que marcam, continuamente, a progressiva revelação do Deus da vida e da razão de viver do povo. Esta lírica religiosa nos foi conservada pelos Salmos. Estes falam da filha predileta do Pai, como a filha de Judá, que exulta porque o Senhor está presente com sua justiça em todas as cidades. A filha de Judá é aquela que anuncia a grandeza de Javé desde a montanha sagrada de Sião. Por isso, é a filha de Sião que une e reúne todos os povos no louvor de um único Senhor e Deus (cf. Sl 48,12).
A filha predileta do Pai é semelhante às colunas que sustentam o palácio e sua beleza, as quais lembram as cariátides gregas, figuras femininas que amparam a justiça e o direito do rei.
Mas esta filha predileta do Pai, ao mesmo tempo que embeleza e guarnece os celeiros do Rei Eterno, com sua participação à vida divina como filha, evoca a prosperidade messiânica para todo o povo de Israel, que apostou em tantos reis terrenos e teve que suportá-los na sua iniqüidade, por tantos séculos e até milênios. Esta filha amada, é a predileta do Pai, porque aponta para a intercessão do Filho junto ao Pai, intercessão da qual participa, trazendo as riquezas messiânicas da liberalidade de Deus Pai para com seus filhos e filhas que somos todos e todas nós.
Como tudo isso se atualiza na perspectiva do Novo Testamento
Comecemos pela mulher que se destaca pela missão que Deus lhe pediu. A mulher escolhida para ser a mãe do Messias, o Enviado do Pai, o Filho diletíssimo do Pai, não podia deixar de ser a filha predileta deste Pai, que revela suas entranhas de mãe, no dizer dos profetas , e no dizer da pregação do Reino feita por Jesus. Ele toma o exemplo da mulher que se alegra ao encontrar a moeda perdida, ao fazer o pão que cresce com o fermento, ao admirar-se da fé indevassável da cananéia e da coragem das mulheres da primeira hora na manhã da ressurreição. A todas estas mulheres, na pessoa das últimas – as da manhã da ressurreição – recebem do Ressuscitado a missão de serem anunciadoras da Boa Nova da vida trazida pelo Ressuscitado, que se mostrou por primeiro, às mulheres e a estas deu-lhes a missão de anunciarem aos discípulos, seus irmãos, a Boa Nova da ressurreição do Filho de Deus, o Cristo Senhor que se torna o doador da vida divina. A esperança do povo de Israel começa a se realizar na medida em que as pessoas aderem a esta Grande Novidade.
A predileção de Deus com relação a Maria, a humilde serva do Senhor, evoca os primeiríssimos tempos da insurreição do ano 70 d.C., em que sempre se constata a presença do servo entre os hebreus. Como filha predileta do Pai, Maria anuncia a livre iniciativa do Pai com relação a sua vida e a sua missão junto ao povo de Israel ao se proclamar serva do Senhor; e é filha predileta porque grandes coisas fez em mim aquele que é todo poderoso.
Maria é filha predileta do Pai porque crê na ação da providência que lhe faz tomar consciência de que o filho que ela gera de suas entranhas é o Filho de Deus. Ela é a predileta porque se encontra sempre presente nas discussões mais aferradas que se estabelecem em torno à origem humana e divina de seu filho, que até na metade do II século, o problema genealógico do Cristo, não estava ainda apagado, na Igreja daquela época. E hoje, a quantas estamos?
A filha predileta do Pai, no Novo Testamento, portanto, se encontra no contexto e na história factual da mulher que busca Jesus porque Ele responde às profundas interrogações que ela mesma se coloca diante de seu Deus e de seu jeito de pronunciar e invocar seu nome santíssimo. Nesta busca a mulher – a filha predileta do Pai do tempo de Jesus – entra em relação direta e encontra-se com Jesus, e tem com Ele uma relação que ultrapassa a dimensão humana que a leva a fazer uma experiência de tocar o mistério que transcende a própria relação humana. A imanência manifestada por Jesus é vivida, pela filha predileta do Pai do Novo Testamento, como transcendência que redireciona a vida e a missão desta mulher.
A narrativa de Marcos nos fala de uma certa mulher que sofria de um fluxo de sangue há doze anos. É uma mulher doente, é a mulher da clandestinidade, vai além da lei, faz o papel de “penetra”, porque se aproxima de Jesus num momento em que muitas pessoas acorrem ao mesmo tempo à pessoa dele Jesus a chama de minha filha, e a presenteia com a notícia da cura: ... a tua fé te salvou; vai em paz e fique curada desse teu mal (Mc 5, 34.35). Na versão da comunidade de Mateus, encontramos esta expressão: Ânimo, minha filha, tua fé te salvou! (Mt 9,18). Jesus percebe a angústia e a ansiedade com que esta mulher toca a orla de seu manto em meio aos discípulos de João, que um após outro, intervém, incluindo um chefe de sinagoga que implora pela filha já morta, sem contar os curiosos que se aglomeram. Tudo está acontecendo ao mesmo tempo.
Em meio a esse tumulto, a mulher apresenta-se sozinha, ninguém a acompanha, e ela tem consciência de como está sendo vista e tratada por todos os que estavam aí: ela é uma pessoa “impura”, que a Lei a exclui por ser “impura”. Mas Jesus une e reúne esta mulher à coletividade que o cercava e a trata com a mesma consideração dada a todas as pessoas que O solicitam, naquele momento. Ela a inclui na sociedade que não quer saber dela.
A mulher da doença que a envergonha diante de seus conterrâneos e conterrâneas, sai da exclusão social e religiosa e da exclusão econômica também, pois havia gasto todos os seus bens sem resultado. A cura é atribuída à sua persistência e à sua fé: Ânimo, minha filha, a tua fé te salvou! (Mt 9,22). O encontro desta mulher com a cura definitiva, é fruto de sua invisibilidade, clandestinidade e seu silêncio cheio de fé, três pequenas coisas que roçam, que tocam o manto, de leve, do Messias e guardam dentro de si poderes de infinito.
Os pequenos e grandes gestos feitos por Jesus, nos levam a pensar que tais gestos são verdadeiros “sinais” que revelam o “rosto” do Pai que está presente na pessoa do Filho que se aproxima das mulheres. Não seriam estas as filhas prediletas do Pai do tempo de Jesus? A hemorroíssa encontra-se com Jesus às escondidas, daí a frase encorajadora dele: Ânimo, minha filha! E sem querer, nem premeditar, o ato desta mulher vem a público.
Em outro contexto descrito por Lucas, Jesus vê uma mulher recurvada de nascimento, fora do templo fazendo sua prece a Javé, porque, segundo a lei de Moisés, não lhe é permitido o acesso ao lugar sagrado pela deficiência com que nasceu. O ensinamento de Jesus dá um novo sentido a esta lei e retoma a fé exemplar de Abraão, e com autoridade, sem rodeios, contrapõe: Esta filha de Abraão, não tem o direito que o boi e o asno do estábulo têm, de beber água em dia de sábado? (cf. Lc 13,14s). Esta mulher nada pede a Jesus. É Ele que se aproxima para tirar-lhe o estigma que a excluía do lugar sagrado, que para o judeu ter contato com o Templo de Jerusalém significava observar, rigidamente, sérias prescrições ditadas pela Torá. Esta filha de Abraão, isto é, filha da herança deste povo fiel a Javé, tem o direito de ser incluída junto com todos os seres humanos que aí se encontram, no templo sagrado e de viver a lei que foi dada para todo o povo, não para estar fora do templo, mas dentro dele e da sua sacralidade.
Para chegar a esta inclusão, Jesus não olha para o templo e nem para o tempo considerado, segundo a religião do povo, tempo sagrado. O sagrado foi feito para servir à pessoa humana necessitada e não para submeter esta pessoa ao sagrado. O sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado (cf. Lc 13,16). Esta filha de Abraão lembra a dignidade humana e o direito, ela pertence à nação eleita, à descendência abraâmica. Ela não é apenas uma descendente da fé abraâmica, mas é da descendência messiânica. Ela é da mesma árvore genealógica, da mesma estirpe de Abraão, mas participa da descendência do Messias esperado pelo. Neste episódio, Jesus percebe, claramente, que a plenitude e o cumprimento da lei, passam também pela transgressão do sagrado, para que haja misericórdia, inclusão, vida e não sacrifício. Este é o espaço sagrado da vida.
Em João e sua comunidade, a filha predileta do Pai é um nome coletivo, é a filha de Sião, o povo eleito, o povo da Aliança que recebe seu Rei-Messias montado num jumentinho (cf. Jo 12,15). O autor resgata a memória do povo que deve voltar a retomar a doutrina messiânica que ressurge da casa de Davi. Há uma preocupação em apresentar a humildade do Messias que está para chegar, em vestes simples e atitude pacífica, contrapondo-se aos reis históricos que o povo teve antes. Esta figura é retomada também por Mateus e Marcos em suas narrativas da paixão. A preocupação que o profeta Zacarias mostra com a restauração do culto do templo, transparece também no Messias que vem para celebrar a aliança que o povo deve retomar.
Concluindo nossa reflexão, podemos afirmar que Maria vem na linhagem das grande mães do povo de Israel, das proféticas matriarcas que sempre se colocaram do lado do povo e das mulheres que no tempo de Jesus, buscavam n`Ele aquilo que a mãe sempre busca para salvar seus filhos e filhas. Maria está presente nas “Marias” de hoje e como discípula-mãe, nos acompanha precedendo-nos no seguimento de Jesus, seu filho e Filho do Pai Eterno. Amém!
Amor – culto – cultura
Irmã Lina Boff
Professora da PUC-Rio, de Petrópolis e convidada pelo Antonianum de Roma
Prólogo: filha predileta do PaiEsta frase evoca uma verdade fundamental da nossa fé cristã e católica, que é a filiação divina, nem sempre colocada na evidência teológica e mariana em que ela merece estar colocada. Se Maria é a filha predileta do Pai, como bem afirma o oitavo capítulo da Lumen gentium, perguntamos já de saída:
- Em que sentido Maria - a mulher do Antigo Testamento que abre o NT - vive esta filiação divina que a faz merecedora do título: filha predileta do Pai?
- De que modo se torna ela inspiração para a vivência da nossa filiação divina, no século XXI, da era digital e da globalização extremada?
- Qual sua influência nas expressões de amor ao Deus Uno e Trino da nossa fé, manifestadas no amor, no culto e na própria cultura?
Introduzindo o assuntoMaria é filha predileta. Em primeiro lugar é filha porque recebe de Deus o dom do seu amor que se manifesta na comunhão vital, pessoal e íntima que ela alimenta e vive com seu Deus. Esta intimidade que Maria vive ao longo de sua vida terrenal e ao mesmo tempo alimenta com seu SIM continuado, não é só física, mas uma comunhão de relação amorosa que ela recebe e acolhe de seu Deus e a esta relação se abre, inteiramente, a ponto se tornar uma comunhão histórico-salvífica, mediante a qual Deus a torna participante da história da salvação de todo o seu povo, e por graça da infinita liberalidade do Pai, a toda a humanidade. Esta concepção é a concepção bíblica predileta do Antigo Testamento que condensa a experiência histórico-salvífica do povo escolhido, na Pessoa do Messias que realiza o Projeto do Pai na história e o plenifica com sua morte e ressurreição.
Por isso, na base da tradição vétero-testamentária, há a eleição de Israel, pela qual o povo vive uma relação de filiação como um dom especial de Deus, porque o destino desta relação é escatológico, ou melhor, eterno. No Novo Testamento, a concepção de filiação divina que Jesus mesmo pouco utiliza em sua pregação do Reino, passa a ser palavra típica do cristianismo primitivo, que encontra sua raiz no batismo de Jesus: Tu és meu filho querido, eu, hoje, te gerei (Lc 3,22); na oração de agradecimento ao Pai pela missão dos setenta e dois discípulos, na qual repete a invocação Pai, por cinco vezes: Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste essas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado. Tudo me foi entregue por meu Pai, e ninguém conhece quem é o Filho se não o Pai, e quem é o Pai se não o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar (Lc 10, 21-22). A palavra Filho nesta breve perícope, é empregada por três vezes e em relação ao Pai, com quem o Filho entra na intimidade que plenifica a vida temporal e aponta para para a transcendência dos fatos históricos do povo de Israel. Pois, as coisas que o Pai ocultta às pessoas sábias e entendidas, não são facta bruta, mas vêm carregados de sentido e de graça salvadora.
A Carta aos Hebreus afirma, estar acima a dos anjos a ação de Jesus na história, porque veio ocupar-se, como Filho dileto, Filho querido da descendência de Abraão, por isso o autor sagrado repete: Tu és o meu Filho dileto, eu hoje te gerei! (Hb 1,5).
Jesus se sente Filho, e assim se relaciona com o Pai. É esta consciência que o consola quando se sente abandonado e rejeitado pela humanidade insana. A consciência que Jesus tem desta realidade e que nos dá a conhecer, de que só o Filho conhece, verdadeiramente, o Pai e de que só o Pai, conhece, verdadeiramente, o Filho, nos leva a uma afirmação que tem fundamento na eleição do povo de Israel. Jesus pertence ao povo de Israel, o povo eleito, e Ele é o escolhido dentre o povo eleito para dar a conhecer o mistério do Pai que ficou escondido há séculos e só agora, na pessoa do Filho dileto, é conhecido e anunciado a todas as nações (cf. Rm 16, 25ss). A eleição, a dileção que o Pai tem para com Jesus, é o fato de que Ele, como Filho, se abre de tal forma ao Plano do Pai, que este pode contar com Ele para a realização de seu Plano de Salvação.
Jesus, portanto, é o Filho dileto do Pai, é o preferido na estima e na afeição, é querido e especialmente, amado. Na prosa do padre escritor, Manuel Bernardes, presbítero da Congregação do Oratório de São Felipe Néri, em sua obra, Exercícios Espirituais, do século XVIII, utiliza o superlativo da palavra dileto para falar da íntima dileção de Deus Pai para com seu Filho:
Já que meu Deus foi tão misericordioso para com os homens, que os quis ensinar pela própria pessoa de seu diletíssimo Filho, ... eu quero, mediante a sua graça, aprender por este exemplar .
Pode-se evidenciar a intensidade da linguagem e a profunda mística que envolve este escritor clássico da prosa portuguesa. Enquanto que a palavra predileção, que também deriva da língua latina e que quer dizer quase a mesma coisa, pode ser explicada, em sua etimologia, da seguinte forma: estar diante da pessoa que se ama. A partícula pre, no latim, denota estar diante de, e dileta, dileção, significa a pessoa preferida na estima, na afeição, querida, especialmente, amada, palavra só dada a Jesus. Por derivação do amor que o Pai devota ao Filho, Maria é a filha pré-dileta do Pai, e é mãe do Filho diletíssimo do Pai, que é Jesus.
A perspectiva do Antigo TestamentoA linhagem bíblica de Maria de Nazaré, denominada pelos padres do Concílio Ecumênico Vaticano II, filha predileta do Pai (LG 53), por estar unida ao Pai, encontra-se ao mesmo tempo caminhando com a humanidade, filha de Adão e Eva, participando da mesma sorte e do mesmo destino. Este vínculo não se dissolve porque está intimamente, conectado com a missão desta mãe – a de marcar a História da Salvação com seu SIM incondicional e livre.
Nesse sentido, Maria está presente e vem da linhagem das Mulheres do Êxodo, que tementes a Deus, pouparam a vida de tantos meninos hebreus, desde o nascimento entre as duas pedras, com a finalidade de manter a presença numerosa dos hebreus em meio a um povo estranho (cf. Êx 1, 15-22). Vem da linhagem da filha do Faraó que arriscou sua nobreza terrena para salvar o Menino tirado das águas, prenúncio de libertação do povo escolhido por Javé (cf. Ex 2, 5-10).
Estas mulheres mostram que não querem a vida só para elas, mas têm consciência de que foram criadas para viverem como filhas e filhos do Criador, que é Pai de todos: poupam a vida dos meninos hebreus, porque a vida é um direito que pertence ao Deus Criador que tirou tudo do nada e não aos homens e nem às mulheres. Deus escolhe pessoas que cuidam da vida. E estas pessoas são mulheres de todas as classes sociais. Nesse contexto, encontramos as parteiras Sefra e Fuá e a filha do Faraó, que segundo a historiografia da exegese contemporânea, aparecem com nomes incertos, mas são apresentadas como mulheres que defenderam a vida arriscando a própria vida e a condição em que eram colocadas.
A filha predileta do Pai, é da estirpe das numerosas filhas de Jerusalém, como narra o mais belo Canto que celebra o amor de um Amante e de uma Amada-amante, que se aproximam e se distanciam, se procuram e se perdem, se buscam e se encontram, mas, se unem no amplexo do amor do meio-dia que não tem sombras, numa interpretação alegórica do amor humano que transcende a terra para chegar ao céu (Gregório de Nissa comentando o Cântico dos Cânticos em Ct 1,5+8,4).
A filha predileta do Pai, vem da árvore genealógica da tradição israelítica, em que a figura feminina protagoniza o momento de esplendor e de projeção que aponta para o sentido universal e coletivo da presença de Javé em meio a seu povo. As filhas de Israel são carregadas sobre as ancas para celebrar o retorno do exílio e o esplendor da cidade santa e sagrada pelo povo; é filha que recebe a luz de Javé, trazendo as riquezas da terra e as riquezas da glória e esplendor do Deus que edifica, enaltece e realiza as coisas que promete (cf. Is 60,4).
A filha predileta do Pai, é a filha de Sião, membro do povo de Israel a quem é dirigida a profecia com estas palavras: Farei de ti eterno motivo de orgulho, motivo de alegria, de geração em geração (cf. Is 60,14). O profeta acrescenta ainda: Serás chamada Procurada! Cidade habitada! (Is 62,12).
A filha predileta do Pai vem de uma aproximação das várias expressões bíblicas do Êxodo e dos Profetas. Com a expressão “filha predileta do Pai”, pode-se deduzir que esta se encontra na figura de Maria, a profetisa, irmã de Moisés, que pega no tamborim e todas as mulheres a seguem com seus tamborins também, para cantar e dançar a libertação de seu povo. Elas estão nas expressões que o autor sagrado tanto repete nesta narrativa: Os filhos de Israel, Israel (cf. Êx 14-15), expressões que têm como desfecho a Maria do tamborin, que toma a iniciativa de proclamar a Javé, vestido de glória pelos seus feitos (cf. Êx 15,21). Nesta narrativa ela não é chamada de filha, mas pertence ao povo de Israel que se organiza com suas filhas e filhos, para dar o golpe no Faraó e marchar em direção à Promessa feita a Abraão, a Isaac e a Jacó. Esta é a filha predileta do Pai que participa, com seu povo e seus chefes, incluindo e dando igualdade de dignidade filial a todos e a todas.
A filha predileta do Pai, vem da linhagem profética do espírito de Javé. Aqui, ela não pode deixar de estar na efusão do espírito profético sobre todo o povo de Deus, preanunciado pelo profeta Joel e proclamado por Pedro, em seu primeiro discurso aos povos de tantas proveniências, no dia de Pentecostes (Cf. Jl 3, 1-5 e At 2, 16ss). Joel fala desta nova criação, afirmando que Javé derramará seu espírito sobre vossos filhos, e, dirigindo-se às filhas de Israel, o profeta é claro: ... e vossas filhas profetizarão. Esse espírito da profecia será derramado, igualmente, sobre as escravas (Jl 3, 1-2). Não é esta a filha predileta do Pai que tem a coragem de inaugurar novos tempos de inclusão e igualdade para todos e para todas? É no espírito de Deus que tem origem a filha predileta do Pai. Por isso, ela é uma personalidade coletiva que ultrapassa a própria figura e a própria corporalidade com que foi plasmada pelo Pai, Criador de tudo e de todas as coisas.
A filha predileta do Pai, é uma personalidade simbólica, portanto, porque coletiva. Não é uma pessoa privada, mas sua representavidade cobre todo o povo de Israel e se torna uma protagonista ao participar na realização de sua libertação dos opressores. Ela está na arte, na música, na pintura e na ópera que perpassa os tempos e as modas. A ópera de George Frederic Handel (1742), intitulada MESSIAH – O Messias – por exemplo, é apresentada com vigor e majestade, na sua forma narrativa, adaptando as cenas destes textos bíblicos para fazer um espetáculo que perpassa os séculos e continua, todavia, até em nossos dias, enchendo-nos de contemplação e mística, Handel com seu veio musical e seu pendor religioso e genial, nos anuncia que o Reino está no meio de nós, através da sua narrativa que perfila os traços característicos do Filho diletíssimo do Pai, figurado em Isaías; e os traços da filha predileta do Pai, que participa do amor que o Pai dá ao Filho e que caminha conosco pelos caminhos da vida dos nossos povos.
Finalmente, a filha predileta do Pai, é celebrada de forma lírica nos momentos da liturgia israelítica, em que povo refresca a memória de sua caminhada histórica feita de eventos e de fatos que marcam, continuamente, a progressiva revelação do Deus da vida e da razão de viver do povo. Esta lírica religiosa nos foi conservada pelos Salmos. Estes falam da filha predileta do Pai, como a filha de Judá, que exulta porque o Senhor está presente com sua justiça em todas as cidades. A filha de Judá é aquela que anuncia a grandeza de Javé desde a montanha sagrada de Sião. Por isso, é a filha de Sião que une e reúne todos os povos no louvor de um único Senhor e Deus (cf. Sl 48,12).
A filha predileta do Pai é semelhante às colunas que sustentam o palácio e sua beleza, as quais lembram as cariátides gregas, figuras femininas que amparam a justiça e o direito do rei.
Mas esta filha predileta do Pai, ao mesmo tempo que embeleza e guarnece os celeiros do Rei Eterno, com sua participação à vida divina como filha, evoca a prosperidade messiânica para todo o povo de Israel, que apostou em tantos reis terrenos e teve que suportá-los na sua iniqüidade, por tantos séculos e até milênios. Esta filha amada, é a predileta do Pai, porque aponta para a intercessão do Filho junto ao Pai, intercessão da qual participa, trazendo as riquezas messiânicas da liberalidade de Deus Pai para com seus filhos e filhas que somos todos e todas nós.
Como tudo isso se atualiza na perspectiva do Novo Testamento
Comecemos pela mulher que se destaca pela missão que Deus lhe pediu. A mulher escolhida para ser a mãe do Messias, o Enviado do Pai, o Filho diletíssimo do Pai, não podia deixar de ser a filha predileta deste Pai, que revela suas entranhas de mãe, no dizer dos profetas , e no dizer da pregação do Reino feita por Jesus. Ele toma o exemplo da mulher que se alegra ao encontrar a moeda perdida, ao fazer o pão que cresce com o fermento, ao admirar-se da fé indevassável da cananéia e da coragem das mulheres da primeira hora na manhã da ressurreição. A todas estas mulheres, na pessoa das últimas – as da manhã da ressurreição – recebem do Ressuscitado a missão de serem anunciadoras da Boa Nova da vida trazida pelo Ressuscitado, que se mostrou por primeiro, às mulheres e a estas deu-lhes a missão de anunciarem aos discípulos, seus irmãos, a Boa Nova da ressurreição do Filho de Deus, o Cristo Senhor que se torna o doador da vida divina. A esperança do povo de Israel começa a se realizar na medida em que as pessoas aderem a esta Grande Novidade.
A predileção de Deus com relação a Maria, a humilde serva do Senhor, evoca os primeiríssimos tempos da insurreição do ano 70 d.C., em que sempre se constata a presença do servo entre os hebreus. Como filha predileta do Pai, Maria anuncia a livre iniciativa do Pai com relação a sua vida e a sua missão junto ao povo de Israel ao se proclamar serva do Senhor; e é filha predileta porque grandes coisas fez em mim aquele que é todo poderoso.
Maria é filha predileta do Pai porque crê na ação da providência que lhe faz tomar consciência de que o filho que ela gera de suas entranhas é o Filho de Deus. Ela é a predileta porque se encontra sempre presente nas discussões mais aferradas que se estabelecem em torno à origem humana e divina de seu filho, que até na metade do II século, o problema genealógico do Cristo, não estava ainda apagado, na Igreja daquela época. E hoje, a quantas estamos?
A filha predileta do Pai, no Novo Testamento, portanto, se encontra no contexto e na história factual da mulher que busca Jesus porque Ele responde às profundas interrogações que ela mesma se coloca diante de seu Deus e de seu jeito de pronunciar e invocar seu nome santíssimo. Nesta busca a mulher – a filha predileta do Pai do tempo de Jesus – entra em relação direta e encontra-se com Jesus, e tem com Ele uma relação que ultrapassa a dimensão humana que a leva a fazer uma experiência de tocar o mistério que transcende a própria relação humana. A imanência manifestada por Jesus é vivida, pela filha predileta do Pai do Novo Testamento, como transcendência que redireciona a vida e a missão desta mulher.
A narrativa de Marcos nos fala de uma certa mulher que sofria de um fluxo de sangue há doze anos. É uma mulher doente, é a mulher da clandestinidade, vai além da lei, faz o papel de “penetra”, porque se aproxima de Jesus num momento em que muitas pessoas acorrem ao mesmo tempo à pessoa dele Jesus a chama de minha filha, e a presenteia com a notícia da cura: ... a tua fé te salvou; vai em paz e fique curada desse teu mal (Mc 5, 34.35). Na versão da comunidade de Mateus, encontramos esta expressão: Ânimo, minha filha, tua fé te salvou! (Mt 9,18). Jesus percebe a angústia e a ansiedade com que esta mulher toca a orla de seu manto em meio aos discípulos de João, que um após outro, intervém, incluindo um chefe de sinagoga que implora pela filha já morta, sem contar os curiosos que se aglomeram. Tudo está acontecendo ao mesmo tempo.
Em meio a esse tumulto, a mulher apresenta-se sozinha, ninguém a acompanha, e ela tem consciência de como está sendo vista e tratada por todos os que estavam aí: ela é uma pessoa “impura”, que a Lei a exclui por ser “impura”. Mas Jesus une e reúne esta mulher à coletividade que o cercava e a trata com a mesma consideração dada a todas as pessoas que O solicitam, naquele momento. Ela a inclui na sociedade que não quer saber dela.
A mulher da doença que a envergonha diante de seus conterrâneos e conterrâneas, sai da exclusão social e religiosa e da exclusão econômica também, pois havia gasto todos os seus bens sem resultado. A cura é atribuída à sua persistência e à sua fé: Ânimo, minha filha, a tua fé te salvou! (Mt 9,22). O encontro desta mulher com a cura definitiva, é fruto de sua invisibilidade, clandestinidade e seu silêncio cheio de fé, três pequenas coisas que roçam, que tocam o manto, de leve, do Messias e guardam dentro de si poderes de infinito.
Os pequenos e grandes gestos feitos por Jesus, nos levam a pensar que tais gestos são verdadeiros “sinais” que revelam o “rosto” do Pai que está presente na pessoa do Filho que se aproxima das mulheres. Não seriam estas as filhas prediletas do Pai do tempo de Jesus? A hemorroíssa encontra-se com Jesus às escondidas, daí a frase encorajadora dele: Ânimo, minha filha! E sem querer, nem premeditar, o ato desta mulher vem a público.
Em outro contexto descrito por Lucas, Jesus vê uma mulher recurvada de nascimento, fora do templo fazendo sua prece a Javé, porque, segundo a lei de Moisés, não lhe é permitido o acesso ao lugar sagrado pela deficiência com que nasceu. O ensinamento de Jesus dá um novo sentido a esta lei e retoma a fé exemplar de Abraão, e com autoridade, sem rodeios, contrapõe: Esta filha de Abraão, não tem o direito que o boi e o asno do estábulo têm, de beber água em dia de sábado? (cf. Lc 13,14s). Esta mulher nada pede a Jesus. É Ele que se aproxima para tirar-lhe o estigma que a excluía do lugar sagrado, que para o judeu ter contato com o Templo de Jerusalém significava observar, rigidamente, sérias prescrições ditadas pela Torá. Esta filha de Abraão, isto é, filha da herança deste povo fiel a Javé, tem o direito de ser incluída junto com todos os seres humanos que aí se encontram, no templo sagrado e de viver a lei que foi dada para todo o povo, não para estar fora do templo, mas dentro dele e da sua sacralidade.
Para chegar a esta inclusão, Jesus não olha para o templo e nem para o tempo considerado, segundo a religião do povo, tempo sagrado. O sagrado foi feito para servir à pessoa humana necessitada e não para submeter esta pessoa ao sagrado. O sábado foi feito para o ser humano e não o ser humano para o sábado (cf. Lc 13,16). Esta filha de Abraão lembra a dignidade humana e o direito, ela pertence à nação eleita, à descendência abraâmica. Ela não é apenas uma descendente da fé abraâmica, mas é da descendência messiânica. Ela é da mesma árvore genealógica, da mesma estirpe de Abraão, mas participa da descendência do Messias esperado pelo. Neste episódio, Jesus percebe, claramente, que a plenitude e o cumprimento da lei, passam também pela transgressão do sagrado, para que haja misericórdia, inclusão, vida e não sacrifício. Este é o espaço sagrado da vida.
Em João e sua comunidade, a filha predileta do Pai é um nome coletivo, é a filha de Sião, o povo eleito, o povo da Aliança que recebe seu Rei-Messias montado num jumentinho (cf. Jo 12,15). O autor resgata a memória do povo que deve voltar a retomar a doutrina messiânica que ressurge da casa de Davi. Há uma preocupação em apresentar a humildade do Messias que está para chegar, em vestes simples e atitude pacífica, contrapondo-se aos reis históricos que o povo teve antes. Esta figura é retomada também por Mateus e Marcos em suas narrativas da paixão. A preocupação que o profeta Zacarias mostra com a restauração do culto do templo, transparece também no Messias que vem para celebrar a aliança que o povo deve retomar.
Concluindo nossa reflexão, podemos afirmar que Maria vem na linhagem das grande mães do povo de Israel, das proféticas matriarcas que sempre se colocaram do lado do povo e das mulheres que no tempo de Jesus, buscavam n`Ele aquilo que a mãe sempre busca para salvar seus filhos e filhas. Maria está presente nas “Marias” de hoje e como discípula-mãe, nos acompanha precedendo-nos no seguimento de Jesus, seu filho e Filho do Pai Eterno. Amém!
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